quinta-feira, 6 de maio de 2010

Resenha do III Congresso Internacional do GIRN (Parte 2 - Final)

Continuando a resenha:

Paralelamente à mesa da manhã do dia 29, apresentada no final da última postagem, houve a mesa “Arte e crítica da decadência” e o atelier intitulado “Decadência e fisiologia da arte”, cujas apresentações (os títulos e os resumos) podem ser vistas no programa e no caderno de resumos nos links postados no comentário à última postagem.

A seção da parte da tarde na qual estive presente foi intitulada: “Moral e espiritualização”, e constou de um atelier (“Espiritualização – Moral como contra-natureza”), do qual fizeram parte Isabelle Wienand e Clademir Luíz Araldi, e da apresentação de André Muniz Garcia, intitulada: “Moral é apenas linguagem de signos, apenas sintomatologia”: a interpretação semiótica de Nietzsche de fatos morais em “O melhorador da humanidade” Nr. 1”. As cominucações do atelier tiveram por tema respectivamente: “O tema da paz de espírito em “Moral como contra-natureza” e “A vontade de poder como “moralização” dos impulsos”. Isabelle Wienand iniciou com sua apresentação do tema da “paz de espírito” (Frieden der Seele, literalmente “paz da alma”), falando sobre a ambivalência da noção a partir do aforismo 3 de “Moral como contra-natureza” e apresentando toda uma gama de fragmentos póstumos de 1885-1888 sobre o tema (entre eles: 49[59] Sept. 1885; 7[6] Ende 1886-Frühjahr 1887; 10[157] Herbst 1887; 11[316] Nov. 1887-März 1888). Clademir Araldi, por sua vez, tratou do problema da ambivalência do termo “espiritualização” (Vergeistigung) em sua relação com a noção de “moralização” a partir do conceito de vontade de poder. A primeira questão através da qual os dois palestrantes foram confrontados veio de Isabelle Wienand, que questionou a aproximação feita por Clademir entre espiritualização e moralização, já que, segundo ela, esses conceitos se referem a pensamentos absolutamente distintos e mesmo contrários. De fato, se por um lado a noção de moralização implica uma referência essencial e evidente ao âmbito da moral (compreendida por Nietzsche como o âmbito da aniquilação dos afetos e das paixões), o termo espiritualização, de importância central nos aforismos 1 e 3 do capítulo em questão, serve para caracterizar exatamente um contra-movimento frente à moral aniquiladora das paixões. É exatamente na medida em que uma natureza decadente não é capaz de estabelecer um compromisso com seus afetos, de resistir às paixões no sentido de não reagir imediatamente e de forma deflagrante a um estímulo (e aqui retornamos ao tema apresentado por Brusotti em sua conferência), que ela tem necessidade da aniquilação das paixões: “il faut tuer les passions”. A espiritualização seria nesse caso a alternativa sadia para o estabelecimento de um “compromisso” com as paixões. A resposta de Clademir consistiu em chamar atenção para o fato de que o termo “moralização”, assim como a noção de “moral”, não devem ser entendidos sempre de um ponto de vista negativo e pejorativo. Existiria em Nietzsche, além da acepção negativa, uma certa compreensão da moral como forma de manifestação positiva da vontade de poder. E então ele apresenta sua tese de base: tendo isso vista, não seria possível compreender o capítulo em questão de CI, e mesmo a obra como um todo, sem ter em mente o conceito de vontade de poder. O fio condutor para a leitura dessa obra deve ser retirado da noção de vontade de poder. É preciso levar em conta que o período de composição de CI é marcado por uma intensa preocupação de Nietzsche com esse conceito, e que este aparece com uma frequência singular nos fragmentos póstumos, apesar de não ser mencionado diretamente no contexto dos aforismos em questão da obra publicada. A réplica de Isabelle Wienand é curta e precisa: mesmo que a noção de moral não seja sempre tomada em uma acepção puramente negativa, este é exatamente o caso no contexto dos aforismos reunidos sob o título “Moral como contra-natureza”. Ou seja, dentro desse contexto, a aproximação entre “moralização” e “espiritualização” seria falha. Num dado momento da discussão, Werner Stegmeier intervém e aponta de forma lúcida um caminho para pensar a questão. Ele sustenta que de fato os conceitos de moralização e espiritualização não se encontram no mesmo campo semântico em Nietzsche, já que a noção de moralização implicaria uma forma de vida comunitária e gregária, ao passo que o termo espiritualização apontaria para uma certa acepção de soberania e de liberdade frente às oscilações das forças, pulsões e afetos. Ambos os conceitos, porém, podem ser referidos à vontade de poder. André Muniz também se mostrou reticente à tese de que só podemos compreender CI referindo as ideias ali presentes à noção de vontade de poder, e perguntou ainda sobre uma possível relação entre as expressões: “espiritualização das paixões” (af.1), “espiritualização da sensibilidade” como “amor” e “espiritualização da inimizade” (af. 3) por um lado, e o par conceitual “grande amor” / “grande desprezo” por outro lado, noções que, em Nietzsche, aparecem lado a lado em algumas passagens e que sugerem enigmaticamente, em uma delas, uma compreensão do grande amor como grande desprezo. Chamou-se ainda a atenção para o acento colocado por Nietzsche sobre a noção de espiritualização nestas passagens, principalmente a partir da expressão “espiritualização da sensibilidade”, tendo em vista que o que encontramos frequentemente em sua obra é muito mais um apelo para a sensibilização (Versinnlichung). Em que sentido deveríamos, pois, entender que a espiritualização das paixões corresponde a um nível de vida superior?

A sequência da sessão foi dedicada à comunicação de André Muniz Garcia, doutorando da UNICAMP. Infelizmente o tempo não foi suficiente para que ele pudesse ler seu texto integralmente, mas as teses principais de sua comunicação foram apresentadas. Trata-se de uma interpretação do aforismo 1 do capítulo “Os melhoradores da humanidade”, que concede centralidade à noção de “moral como semiótica” para a compreensão de toda a reflexão de Nietzsche acerca dos fenômenos morais. O ponto de partida da interpretação de André Muniz é a questão da auto-evidência da moral, moral enquanto algo simplesmente dado. Nietzsche estaria exigindo do filósofo sobretudo um posicionamento que questione essa auto-evidência e que assuma o lugar da suspeita frente à moral. Antes de tudo, seria preciso compreender o caráter próprio da afirmação nietzscheana segundo a qual não existem fatos morais. Para André Muniz, essa afirmação implica uma crítica ao caráter convencional (e aqui ele se baseia no conceito de convenção de Josef Simons: Phiosophie des Zeichens) da interpretação moral do homem, pelo qual esta interpretação se tornou a mais evidente. Só se pode questionar filosoficamente um determinado fenômeno na medida em que este fenômeno não é visto como auto-evidente, e esta seria exatamente a exigência de Nietzsche ao reclamar suspeita frente à moral, isto é, desintegrar sua auto-evidência: “não existem fatos morais”. O próximo passo da argumentação é a compreensão de que a moral, enquanto crença, exige a comunicabilidade como seu elemento mais essencial. André Muniz se refere a Kant para sustentar essa tese: a pedra de toque da crença é a possibilidade de comunicá-la e torná-la válida para a razão de todo homem (CRP, B849/A821). Essa comunicabilidade, entretanto, não se baseia em nenhuma forma de raciocínio teórico, mas simplesmente no “tomar como verdadeiro” aquilo que deve ser comunidado (retornamos aqui ao problema da auto-evidência), motivo pelo qual Kant afirma que a crença é uma forma de pensamento moral da razão que toma como verdadeiro aquilo que não é acessível ao conhecimento. Nesse sentido, a moral seria um processo de compreensão (interpretação) que toma por verdadeiro aquilo que, segundo Nietzsche, é o mais problemático. Segundo André Muniz, este o ponto chave para a inserção da noção de compreensão plena (vollkommenes Verstehen), como o entende Josef Simon, na interpretação da perspectiva de Nietzsche, já que aquilo que é compreendido nesse sentido exclui a possibilidade de qualquer questionamento. Dentro desse contexto, moral seria semiótica no sentido em que tudo aquilo que faz parte do processo de compreensão é signo transmissível, comunicável. A evidência da moral se fundaria, em última instância, na evidência de signos de comunicação que não são mais questionados. Na seguida André explica a relação entre os conceitos de signo e de sintoma, relação que esclarece a visão de Nietzsche da moral como sintomatologia.

Como fechamento do dia tivemos a apresentação do volume: Letture della Gaia scienza – Lectures du Gai savoir, livro que reune os textos apresentados no último colóquio do GIRN.

Entramos no último dia do encontro com outras duas sessões paralelas: de um lado o tema era a Grécia, do outro as estruturas e intenções do CI enquanto livro. Confesso, entretanto, que estive presente somente em corpo em uma das mesas da primeira parte da manhã (o cansaço já começava a se manifestar), de forma que me pouparei de traçar comentários sobre esta sessão aqui, sob o risco de escrever bobagens. Os títulos e os resumos das comunicações podem ser vistos nos links que deixei no comentário à primeira postagem.

Na segunda parte da manhã fui assistir à palestra do Ernani Chaves, que falou sobre a visão de Nietzsche acerca de Platão no aforismo 2 do capítulo “O que devo aos antigos”. Partindo da declaração nietzscheana de que “Platão é entediante” (Plato ist langweilig), Ernani fez uma análise exaustiva do campo semântico do termo alemão langweilig, recuperando diversas acepções do termo, como a ideia de melancolia (Schwermut), tristeza, monotonia, desapontamento, amargura, desgosto (estas últimas palavras reunidas no campo semântico de Verdruß), assim como uma análise do substantivo Langweile, chamando atenção para sua relação com a ideia de um mal-estar existencial (existezielles Unbehagen), para classificar de forma exata o caráter da crítica nietzschana à figura de Platão no contexto de CI.

Após a comunicação de Ernani Chaves, Yanick Souladié, professor na universidade de Toulouse, apresentou seu trabalho sobre Sócrates e Platão no CI. Segundo ele, há ali uma mudança na recepção de Nietzsche das figuras de Sócrates e de Platão, principalmente com relação à interpretação de Sócrates presente em NT e de Platão presente nos cursos da época da Basiléia. A crítica nietzscheana desses personagens presente no CI deveria ser inserida no projeto de inversão dos valores. Se em NT Sócrates é visto como a personagem principal no contexto da decadência da tragédia e da dissolução do instinto propriamente grego, de forma que podemos estabelecer uma divisão entre Grécia trágica e Grécia socrática, este não é o caso em CI. Nesta última obra, Sócrates não é visto mais como causa, mas como ponto culminante de um processo já em andamento de dissolução do instinto grego, ou seja, ele perde a centralidade na narrativa da decadência da Grécia. A condenação da figura de Sócrates é agora justificada pelo fato de que ele teria impedido uma morte digna, “uma bela morte” da Grécia, a morte no momento certo, retardando seu processo de perecimento e instaurando assim uma morte lenta e decadente. Por sua vez, porém, Sócrates teria se concedido uma morte rápida e digna, uma bela morte, direcionando-se ao suicídio. Haveria aí, nesse sentido, uma certa diferença entre o homem Sócrates e sua doutrina. No caso da figura de Platão, poderíamos dizer, segundo Souladié, que ele é, de uma forma geral na obra de Nietzsche, mais apreciado do que Sócrates, principalmente no que diz respeito ao seu caráter legislador. No que pese as críticas radicais ao platonismo, a figura do homem Platão é frequentemente vista de um ponto de vista positivo. Em CI, porém, não é somente o platonismo enquanto metafísica idealista que é condedano, mas figura mesmo de Platão, enquanto homem e escritor. Ele é visto ali como pré-cristão e oposto, enquanto escritor, a todo o estilo romano. Como já havia mencionado Ernani Chaves na comunicação precedente, a acusação nietzscheana de que Platão é entendiante toca um ponto fundamental que vai além da simples crítica literária. A crítica ao estilo seria aqui extensiva à personalidade mesma do homem Platão. Durante a discussão, Andrea Urs Sommer perguntou pelo motivo da ausência de Platão em AC, já que em CI este é diretamente associado a uma forma de pensamento pré-cristã, como forma prototípica de tudo aquilo que viria a ser o cristianimo. Yanick Souladié considera este ponto efetivamente um problema e sugere que, apesar de todas as críticas de Nietzsche, ele continua vendo os personagens Platão e Sócrates com certo respeito e cuidado. Assim, no caso específico de Platão e de sua ausência em AC, a hipótese de Souladié é que Nietzsche consideraria injusto associar Platão diretamente ao cristianismo, tal como este é apresentado e criticado em AC, já que Platão, além de seu caráter como filósofo político, deve ainda ser visto como fundador de uma forma de pensamento particular. No caso do cristianismo, porém, tal como considerado historicamente em AC, a figura original do fundador desaparece e o que resta não é senão uma religião pregada por discípulos, na qual o caráter da individualidade, da particularidade se perde completamente dando lugar a uma vulgarização absoluta de uma ideia. Após a apresentação coloquei-lhe ainda as questões de qual seria o motivo que teria levado Nietzsche a reinterpretar a figura de Sócrates no contexto da decadência da Grécia antiga, retirando-lhe a centralidade nessa narrativa e vendo-o simplesmente como o ponto de expressão radical de um processo já em andamento, e ainda, já que Sócrates não é mais visto como causa desse processo, qual seria então essa causa. Questionei se a leitura que Nietzsche fez do livro Os céticos gregos, de Victor Brochard, não poderia tê-lo influenciado na sua releitura da decadência grega, já que o autor possui toda uma teoria sobre o processo de dissolução do espírito grego. A resposta de Yanick foi que a ideia da decadência do instinto grego já estava presente na filosofia de Nietzsche muito antes de sua leitura de Brochard, e que ele não está certo se essa leitura poderia ter contribuído de forma decisiva para sua reinterpretação em CI.

A sessão da parte da tarde contou com três apresentações: Céline Denat (“A figura de Platão no CI”), Werner Stegmeier (“Mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem a coragem para aquilo que ele realmente sabe”. Limites do conhecimento filosófico segundo Nietzsche e sua arte da sentença”) e Giuliano Campioni (“Histrionismo da decadência e histrionismo dionisíaco: Wagner e Nietzsche”). A começar pela comunicação de Céline Denat, professora na Universidade de Reims, eu diria que seu trabalho constou em apresentar uma diferença na visão de Nietzsche de Sócrates e de Platão, no sentido de entendê-los como tipos completamente distintos, insistindo no caráter positivo da visão nietzscheana de Platão. Ela acentua a perspectiva política da intepretação do personagem Platão e sustenta que Nietzsche vê em sua figura um forte caráter legislador. Digno de nota seria a interpretação da mentira de Platão no contexto da constituição de sua república, a mentira que deve ser contada aos guardiões para que eles se mantenham em seus postos e tornem possível a estruturação do estado. Segundo Nietzsche, haveria aí uma verdadeira hipocrisia, fundada numa motivação política, e que colocaria em questão a vontade de verdade presente no idealismo platônico. Ou seja, para Nietzsche, Platão concederia claramente um privilégio à política frente ao idealismo. Em linhas gerais, a preocupação de Céline Denat em sua comunicação foi de salvaguardar a figura de Platão e lhe conceder um lugar particular no pensamento de Nietzsche, notadamente em CI, apesar das críticas direcionadas ao personagem. Após a comunicação, Yanick Souladié, que acabara de apresentar seu trabalho sobre o mesmo tema, porém a partir de uma interpretação oposta, coloca a questão que havia guiado sua leitura. A seu ver, a particularidade de CI seria justamente de inverter a relação entre Platão e Sócrates (no sentido de que agora Sócrates é visto como superior à Platão), concedendo um novo lugar a este último na narrativa sobre a Grécia e condenando o filósofo e o homem Platão como pré-cristão e, principalmente, como estiliscamente decadente e entendiante (condenação grave, se pensarmos na relação particular de Nietzsche com a questão do estilo). Ou seja, CI não seria de forma nenhuma o lugar de uma consideração positiva de Platão, antes pelo contrário, seria o lugar de sua condenação. A resposta de Céline Denat consistiu em dizer que a crítica de Nietzsche ao estilo de Platão é estratégica no sentido de se opor à interpretação corrente de Platão como um bom escritor e literato, com o intuito de chamar a atenção para o fato de que o que há de mais digno em Platão não é de forma nenhuma o estilo e a escritura, mas o projeto filosófico/político como um todo. Andrea Urs Sommer também colocou a mesma questão que ele já havia colocado à Yanick, a saber, como Céline Denat explicaria a ausência de Platão em AC, tendo em vista que em CI ele é considerado como pré-cristão. Segundo Céline, essa ausência se explicaria pelo fato de que Nietzsche considera o cristianismo na verdade como uma má leitura de Platão, de forma que o que haveria de efetivamente valoroso no pensamento platônico é deixado de lado em prol de uma radicalização do idealismo e do motivo da transcendência. Nesse sentido, seria ilegítimo inserir a figura Platão no contexto de uma análise do cristianismo, tal como esta é desenvolvida em AC.

Na penúltima comunicação do encontro fomos contemplados com uma bela e profunda exposição de Werner Stegmeier, um dos maiores nomes da Nietzsche-Forschung atual, professor em Greifswald. Partindo do aforismo 2 do capítulo “Sentenças e setas” (“Mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem a coragem para aquilo que ele realmente sabe”), Stegmeier analizou tanto seu conteúdo quanto sua forma, refletindo sobre a arte da sentença e sobre os limites do conhecimento filosófico. A forma da sentença, segundo ele, comprime intuições e juízos surpeendentes em uma única frase. Ela é a forma mais curta do aforismo e, entre as formas da escritura filosófica de Nietzsche, a mais densa, a mais difícil de analisar e por isso, talvez, a mais interessante do ponto de vista filosófico. Stegmeier faz referência a algumas passagens de Nietzsche, onde ele afirma que “há sentenças nas quais toda uma cultura, toda uma sociedade se cristalizam repentinamente” (ABM 235), ou ainda: “por isso temos o direito de pronunciar, em sentenças, algo duvidoso sem nenhuma hesitação” (N 1876/77, 20 [3]). Ademais, as sentenças podem ser lidas separadamente, sozinhas, solitárias. Enquanto setas, flechas, elas devem atingir e ferir, talvez até mesmo matar. Stegmeier fala do Zaratustra de Nietzsche, de como seu discurso tem a potência de se tornar sentença, e cita algumas passagens nas quais a característa fundamental da sentença é trazida à luz de forma evidente: “A sentença fremente de paixão; a eloqüência tornada música; raios arremessados adiante, a futuros ainda insuspeitos” (EH, Za 6). Aqui, afirma Stegmeier, a estrutura proposicional da frase gramatical é modificada. Não se encontra o verbo, ligando um sujeito a um predicado. Tudo aquilo que é irrelevante é retirado, só aquilo que comprime a força do pensamento tem direito a um lugar na sentença. Ele diz ainda que Nietzsche, inicialmente, entremeou sentenças (Sprüche) em seus livros de aforismos, como em HH, A ou GC, mas somente em ABM ele ousou a plublicação de um conjunto somente de sentenças, “Sprüche und Zwischenspiele“. O segundo conjunto, “Sprüche und Pfeile“, em CI, seria o mais pleno e mais denso. Na sequência, Stegmeier apresenta o que ele interpreta como sendo a preparação para a confrontação com os limites do saber, a partir do aforismo 1 do capítulo em questão. Trata-se da noção de “ócio” do psicólogo. Ele chama atenção para o fato de que o termo “ócio” implica fundamentalmente uma ausência de compromisso com um objetivo determinado para uma tarefa. No ócio a tarefa não se direciona diretamente a uma meta, e exatamente por isso permanece aberta ao novo, ao surpreendente, ao auto-questionamento; ela é, nesse sentido, um prova para a grande saúde. Aqui ele entra no aforismo central de sua análise, a sentença: “mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem coragem para aquilo que ele realmente sabe”, dizendo que essa senteça pode ser, para o filósofo, mortal. Ele faz então uma análise da preparação da sentença, recorrendo a cartas de Nietzsche nas quais várias formas iniciais da sentença são apresentadas, antes de se chegar à sentença final. Por último, a sentença é trazida para o interior da reflexão sobre o niilismo. Segundo Stegmeier, ela conduz para além do niilismo. Coragem é a disposição para a ação sob o risco, na incerteza do ponto de chegada e do ponto de partida. O pano de fundo dessa sentença seria essencialmente a reflexão sobre o niilismo, e Stegmeier se refere ao fragmento póstumo 9[123] de 1887: “Sobre a gênese do niilista. / Tem-se somente tarde a coragem para aquilo que se sabe”. O ponto chave da argumentação é o fato de que, em última instância, o saber, o pensamento, não possui objeto, ele corre em direção ao nada. Mesmo o niilismo, enquanto objeto de reflexão, ainda é capaz de tranquilizar, pois instaura algo a ser pensado. Mas o niilismo enquanto tal é a ausência absoluta de objeto do pensamento (absolute Gegenstandslosigkeit des Denkens). Não há, portanto, um saber sobre o niilismo. O saber nada sabe (Das Wissen weiß nichts). O niilismo não é nem mesmo pronunciável. Assim sendo, Nietzsche deixa de lado o termo “niilismo” na sentença em questão. Ele não é senão a ausência de objeto do pensamento. Ele só vem a ser verdadeiramente niilismo quando se sabe que não se pode saber a seu respeito e que não podemos nem mesmo nos tranquilizar com sua nomeação. O niilismo só se deixa compreender em uma sentença que não o pronuncie. Como resposta a uma questão colocada por um dos ouvintes, acerca do lugar do filósofo nessa trama dos limites do saber filosófico, Stegmeier responde que o filósofo é aquele que é capaz de realizar um experimento de pensamento no qual ele pode perecer.

Infelizmente, após essa comunicação, que, confesso, me tocou de uma maneira particular, com o cansaço já batendo insistentemente, e pelo fato de que a última palestra, de Giuliano Campioni (“Histrionismo da decadência e histrionismo dionisíaco: Wagner e Nietzsche”) foi em italiano, não fui capaz de acompanhá-la. Termino por aqui, pois, essa resenha, já que o que ocorreu depois foi somente uma discussão sobre o formato e sobre a temática do próximo encontro, que ocorrerá em Greifswald e tematizará os prefácios de Nietzsche. Não se sabe ainda se os textos apresentados nesse encontro serão publicados em livro, como os do encontro passado, mas tendo em vista a plataforma de publicações online que está sendo organizada, acredito que ao menos ali eles serão publicados.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Resenha do III Congresso Internacional do GIRN (Parte 1)

Ocorreu, entre os dias 28 e 30 de abril, na cidade de Pisa, o III Congresso Internacional do GIRN: Grupo Internacional de Investigações sobre Nietzsche, cujo tema foi: "Leituras do Crepúsculo dos Ídolos". Os últimos dois encontros, que ocorreram em março e julho de 2009, traziam como tema "Leituras da Gaia Ciência" e "Nietzsche pensador da política? Nietzsche pensador do social?" respectivamente. Reunindo pesquisadores de várias partes do mundo, incluindo um número considerável de brasileiros, o encontro tornou possível a discussão de vários temas e problemas em torno de questões, presentes de forma marcante na obra, relativas à moral, à ciência, à psicologia, à fisiologia da arte, além de trazer à público algumas informações importantes sobre o estado da Nietzsche-Forschung internacional hoje em dia. Esta resenha tem por objetivo oferecer uma visão geral de alguns dos temas debatidos no encontro, a partir da perspectiva dos interesses teóricos deste que vos escreve.

Após a saudação dos anfitriões que acolheram o encontro nos espaços da Faculdade de Letras e Filosofia de Pisa, Patrik Wotling, professor na Universidade de Reims e referência na França na pesquisa de Nietzsche, falou um pouco sobre estrutura do GIRN, o significado do caráter internacional das atividades do grupo, e sublinhou a importância de se conhecer todas as línguas que fazem parte oficialmente do grupo (alemão, francês, inglês, português, espanhol e italiano) para que haja uma troca efetiva entre os pesquisadores dos diversos países. Particular atenção foi concedida ao Brasil como importante pólo da Nietzsche-Forschung atual, o que deu ocasião para o anúncio de que Scarlet Marton passaria a fazer parte da presidência do GIRN. Foi anunciada também a participação do grupo no programa Europhilosophie (programa do qual faz parte este que vos escreve), o que terá como resultado o lançamento de uma plataforma de publicações online de trabalhos, artigos, monografias e anais de congressos no site do programa. Pretende-se implementar uma estrutura editorial diretamente vinculada ao programa, com um comitê científico de alto nível, assim como uma editora virtual que portará o nome "Édition d'Ariane", e que será acessível no site http://www.europhilosophie.eu/. Essa iniciativa abrirá espaço para pesquisadores publicarem seus trabalhos numa revista diretamente associada do GIRN em todas as línguas mencionadas acima.

Após o tratamento das questões institucionais, o trabalho temático é aberto com a palestra, em língua francesa, do novo membro da presidência do GIRN, Scarlet Marton, cujo título foi: "À procura de um critério de avaliação das avaliações. As noções de vida e valor em Nietzsche." Trabalhando principalmente sobre o aforismo 2 do capítulo « O problema de Sócrates » e o aforismo 5 do capítulo "Moral como contra-natureza", ela tentou mostrar a diferença entre as abordagens dessas duas passagens com relação ao problema de um possível critério de avaliação das avaliações, notadamente das avaliações relativas ao valor da vida. O argumento parte da insistência de Nietzsche em abandonar o ponto de vista epistemológico na análise do problema em prol de um ponto de vista axiológico / fisiológico, que se pergunta, a partir da perspectiva do psicólogo, pela origem das avaliações. Assim, a pergunta pelo valor da vida é reinserida num plano de análise sintomatológico: os julgamentos de valor sobre a vida não são senão sintomas de um tipo de vida, no caso da figura de Sócrates, de um tipo de vida doente. E Sócrates se sabia doente, de forma que ele termina por se suicidar. Este é o argumento do capítulo "O problema de Sócrates". O capítulo "Moral como contra-natureza" tem também por base da crítica a noção de negação da vida. Segundo Scarlet, Nietzsche retorna aqui à problemática de Sócrates relativa ao julgamento de valor sobre a vida, elegendo, porém, como oponente, o cristianismo. A idéia de que o problema do valor da vida é um problema inacessível é retomada, porém um novo elemento é colocado no argumento. Trata-se da menção a um julgamento que fosse capaz de abarcar todas as perspectivas sobre a vida, o que, para Scarlet Marton, insere o perspectivismo na análise presente na passagem em questão, o que não encontramos na passagem tratada anteriormente. Ao retomar ali a noção de valor, Nietzsche estaria, portanto, apresentando também a sua noção de ser-humano, já que, ao dizer que para tocar o problema do valor da vida seria preciso conhecê-la tão bem quanto todos aqueles que já viveram, ele estaria sugerindo que a pluralidade, melhor dizendo a totalidade de perspectivas de julgamento de valor sobre a vida estaria fundada sobre uma pluralidade de configuações pulsionais que determinam o ser-humano enquanto tal. Nesse sentido, é a pluralidade de pulsões, a multiplicidade de forças que avaliam. Haveria então um continumm entre homem e natureza: ambos se constituem enquanto configurações de forças. Tudo o que ocorre na esfera da vida em geral tem o mesmo estatuto daquilo que ocorre no homem. Conclusão: se por um lado a análise do problema do valor da vida no aforismo 2 de "O problema de Sócrates" apresenta apenas um deslocamento crítico de um nível epistemológico para um nível axiológico / fisiológico, o aforismo 5 de "Moral como contra-natureza" apresentaria, por sua vez, um novo ponto de vista para a análise do problema a partir da noção de perspectivismo, sendo que aqui Nietzsche colocaria em jogo uma concepção positiva (não somente crítica) do ser-humano.

Na sequência do encontro tivemos a apresentação de Patrik Wotling, também em francês, sobre o tema: "Duas idiossincrasias e quatro grandes erros", que tratou dos temas da psicologia do erro e da crítica aos pré-conceitos filosóficos. Os textos de base foram os capítulos "A razão na filosofia" e "Os quatro grandes erros" de CI. Inicialmente Wotling chama a atenção para o modo específico de pensar e de argumentar que encontramos nas obras de Nietzsche. Ele não se contenta em refutar ou recusar teses, ele reorganiza toda a lógica argumentativa, o que teria uma relação intrínseca com sua concepção de psicologia e com seu fazer filosofia enquanto psicologia. Fazendo menção ainda ao caráter das outras obras de Nietzsche, onde o filósofo se ocupa em argumentar mais lentamente e longamente sobre os temas, como em HH ou ABM sobre a lógica e os pré-conceitos dos filósofos, Wotling acentua o caráter particular de CI como uma espécie de versão econômica de diversas teses do filósofo, na qual Nietzsche teorisa muito pouco, de forma que as linhas de argumentação possuem uma força particular, como numa espécie de resumo programático. No que tange a maneira de filosofar dos filósofos, o que é acentuado é a raíz, ou as raízes, de seus erros e idiossincracias. Haveria, basicamente, duas distorções básicas no modo tradicional de fazer filosofia: ausência de senso histórico e confusão entre aquilo que vem primeiro e aquilo que vem por último (assim traduz Wotling o título do primeiro capítulo de HH: "Von den ersten und letzten Dingen" em relação ao início do aforismo 4 de "A razão na filosofia" de CI). Além das duas distorções, haveria ainda os quatro grandes erros: confusão entre a causa e a consequência (corresponde ao aforismo 1), crença na causalidade (corresponde ao aforismo 3), causas imaginárias (aforismo 4) e vontade livre (aforismo 7). O argumento de base de Wotling é a necessidade de uma leitura dupla dos capítulos em questão, de forma que o capítulo "Os quatro grandes erros" deveria complementar a leitura do capítulo "A razão na filosofia". Tomando como fio condutor o primeiro aforismo de "Os quatro grandes erros", que trata da inversão ou confusão entre causa e efeito, Wotling sublinha a complexidade que estaria oculta na inserção aparentemente despropositada da noção de "vontade livre" no final do aforismo. Essa noção remeteria ao parágrafo 4 de "A razão na filosofia" e deveria ser considerada como chave para a interpretação do aforismo e de todo o capítulo em questão. O que Nietzsche criticaria seria exatamente e sobretudo a concepção de Ursache (causa) como causa livre, a partir da noção de vontade livre. Wotling apresenta então a noção de pulsão causal (Ursachentrieb), inserida por Nietzsche no aforismo 4 de "Os quatro grandes erros", explicando sua relação com o esquema lógico necessário ao processo de percepção, o esquema lógico que faz intervir imediatamente um elemento como causa por ocasião da experiência perceptiva. Duas questões, porém, que ao meu ver fizeram falta em sua apresentação, são: 1. a relação entre o esquema lógico de relação causal e a constituição da consciência (af. 4), e 2. a explicação de Nietzsche da Ursachentrieb como estando fundada no sentimento do medo, o que ele chama de "explicação psicológica" (af. 5).

Após uma pausa, Luis Santiago Guervós tomou a palavra para apresentar seu trabalho: "A fisiologia da arte como estratégia antimetafísica". A apresentação foi feita em espanhol e eu confesso que não dediquei muita atenção à comunicação, já que num encontro como este é preciso selecionar o que será objeto de escuta atenta, pois a carga de trabalhos é imensa. Esta resenha é, nesse sentido, absolutamente unilateral. Entretanto, para dizer em poucas palavras, sua comunicação tratou da questão da nova perspectiva da estética nietzscheana em CI a partir dos aforismos 8 a 11, 19 e 20 do capítulo "Incursões de um extemporâneo", inserindo essa questão nas tramas da noção de vontade de poder, entendida ali como "acontecimento interior" que é então transposto numa forma de superprodução estética fundada sobre "valores" biológicos e fisiológicos.

Em seguida a palestra de Marcos Brusotti, intitulada "Genealogia e psicologia no Crepúsculo dos ídolos". Gostaria de poder apresentar com mais clareza o argumento geral de sua comunicação, já que ele se baseia numa análise sutil do campo semântico de utilização de determinados conceitos na GM e no CI. Porém, devido a minha evidente dificuldade em entender bem o italiano, não captei senão algumas peças dispersas da argumentação, e ainda assim graças a ajuda do André Muniz, que apresentou também no penúltimo dia do encontro, e que estava ao meu lado esforçando-se em me fazer compreender alguns pontos da argumentação do Brusotti. Em todo caso, sua comunicação tratou da noção de ócio e atividade, mais especificamente com relação à expressão presente no prefácio à obra em questão: ócio de um psicólogo. A questão condutora era saber se a GM poderia ser inserida no mesmo contexto filosófico do ócio do psicólogo no qual teve origem CI. Para isso, Brusotti se dedica inicialmente a uma análise do campo semântico das duas obras, afirmando que em GM nos deparamos com termos que não aparecem em CI, quais sejam: "ativo", “reativo”, “atividade”, “agente”, “agir”. Entretanto, CI trabalha com uma noção, também presente em CW, que guarda uma semelhança semântica com o contexto de GM. Trata-se da noção de “Reagieren” (reagir) e “Nicht-Reagieren” (não-reagir). Na verdade haveria uma certa modificação na compreensão e na utilização do termo “reagir” em CI, se pensarmos no uso quase sistemático que Nietzsche faz do termo “reativo” em GM. Em CI “Reagieren” é associado a um estado fisiológico de degenerescência (af. 2 de “Moral como contra-natureza”), na medida em que o que é sublinhado é sua oposição à capacidade de não reagir. Segundo Nietzsche, uma natureza que não é capaz de não reagir imediatamente a um estímulo (Brusotti chama a atenção aqui para a dupla negação), ou seja, que não é capaz de tomar decisões com relação a seus afetos, que necessita portanto de uma dissipação imediata da energia vinculada a um estímulo, é uma natureza degenerescente. O ressentido teria exatamente essa estrutura fisiológica. Ao contrário, uma natureza forte seria caracterizada por uma certa lentidão da reação, por uma prudência decidida e prolongada, o que a insere no campo semântico do termo “ócio” que funciona como termo chave para a caracterização da atividade do psicólogo. A noção de “incapacidade de não reagir” vinculada a uma natureza degenerescente, Nietzsche a retira, segundo Brusotti, do médico francês Charles Féré, cujos estudos mostram a relação intrínseca entre os sintomas nevróticos e a necessidade de reação imediata a um estímulo. Segundo Nietzsche, o gênio teria uma natureza nevrótica. Cria-se assim uma oposição entre figuras do tipo: gênio / psicólogo. Como última observação, Brusotti associa ainda a idéia de incapacidade de não reagir ao conceito de Auslösung, do verbo auslösen: desencadear, deflagrar, ocasionar. O conceito desempenha um papel importante na filosofia do último Nietzsche e, segundo Brusotti, serve aqui para designar uma reação intensa e qualitativamente maior do que a quantidade de energia originalmente contida no estímulo. A contextualização semântica conduz a conclusão de que, apesar da diferença entre os termos e conceitos utilizados em GM (aktiv, reaktiv, Aktivität) e CI (Reagieren, Nicht-Reagieren, Auslösung) para qualificar determinados tipos e caracerizar a atividade genealógica e a atividade do psicólogo respectivamente, podemos inserir as duas obras num mesmo contexto filosófico.

A parte da tarde inaugurou um formato novo de comunicação no encontro: o atelier. Na verdade houveram ainda comunicações paralelas, de forma que não pude estar presente em todas as palestras. Em todo caso, o formato do atelier é simples e direcionado mais para a discussão do que para a apresentação em si. Dois palestrantes integram uma mesa juntamente com um mediador, um tema é proposto, ambos fazem uma curta apresentação de sua interpretação do tema, e incia-se o debate entre eles e a discussão com os ouvintes. Antes do primeiro atelier, entretanto, tivemos a palestra de Jesus Conil sobre o tema: “O que significa progresso no sentido de Nietzsche?”. Porém, esta foi uma das palestras excluídas da minha escuta atenta. Foram tratados temas como o antidarwinismo de Nietzsche e a relação entre niilismo e progresso.

Após a palestra, o atelier. Fizeram parte do primeiro atelier, que se desenrolou em inglês, Tom Bailey e João Constâncio. O tema geral teria sido a questão da vontade e da liberdade, sendo que Bailey deveria apresentar a comunicação “Kantiano ou anti-kantiano? Nietzsche sobre a vontade” e João Constâncio a comunicação “A ideia de liberdade em CI”. Entretanto, desde o início da fala de Bailey notou-se que o tema de sua comunicação seria outro. O que ele apresentou foi a relação de Nietzsche com algumas noções kantianas, como a rejeição da noção de uma realidade transcendente, assim como a rejeição da ética kantiana, mas acentuou também o diálogo construtivo com a tradição transcendental principalmente através de African Spir. A tese geral é que o Nietzsche do período intermediário compartilha a ideia de Spir da impossibilidade de julgamentos empíricos, já que todo julgamento implica um princípio ontológico de identidade que não pode, em sentido forte, ser encontrado no mundo da experiência. Segundo Bailey, haveria nessa concepção a ideia de que a realidade é de certa forma acessível, mas não é passível de ser inserida na estrutura sintática dos julgamentos, ou seja, não podemos fazer julgamentos empíricos sobre o mundo. Bailey sustenta, entretanto, que o último Nietzsche rejeita o modelo de Spir e aceita uma forma de realismo empírico que implica tanto a acessibilidade ao mundo quanto a possibilidade dos julgamentos a seu respeito. A uma questão colocada por Jaanus Soovali, da Universidade de Tartu (Estonia), sobre o que significaria "acessibilidade ao real," Bailey responde, utilizando um exemplo mais que simples, que quando dizemos de um microfone que ele é negro, etc. falamos efetivamente de características da coisa, fundamento sobre o qual toda a ciência se desenvolve. Tivemos uma pequena conversa durante a pausa, na qual eu e Jorge Viesenteiner, professor da PUC-Paraná, recolocamos-lhe a questão, referindo-nos ao aforismo 354 da GC sobre a relação entre consciência, linguagem e fenomenismo. Ele disse então que levando em consideração este aforismo sua tese se torna realmente difícil de sustentar, e que neste caso este aforismo deveria ficar fora do jogo. Mas mesmo dentro do contexto das reflexões de CI, retruquei, podemos encontrar argumentos contra esta tese, por exemplo na ideia, presente nos aforismos 2 e 5 de “A razão na filosofia”, de que a linguagem e as categorias da razão falsificam necessariamente. Na medida em que a ciência se funda sobre essas categorias e se estrutura através da linguagem, ela engendra necessariamente o erro. Nesse caso, porém, teríamos que reconsiderar o significado da noção de “acesso ao real” e pensar na possibilidade de uma experiência pura, para a partir daí tentar sustentar novamente a tese de um Nietzsche realista empírico.

Devido à discontinuidade dos temas apresentados nesse primeiro atelier, a discussão ficou de certa forma fragmentária, sendo que os temas abordados acima apareceram somente no final da discussão. Quase toda a discussão girou na verdade em torno da comunicação de João Constâncio sobre a ideia de liberdade em CI. Em linhas gerais, seu argumento parte da aporia constatável em vários textos nietzscheanos entre afirmação de um determinismo e aceitação de uma noção de liberdade e autonomia. Entretanto, a oposição necessidade / vontade livre, segundo Constâncio, não dá conta do problema. Não se trata de uma vontade livre, mas sim de uma noção de autonomia que quer dizer: dar a si mesmo suas leis, criar suas leis. À questão se a consciência pode determinar a ação, Constâncio responde que a consciência na verdade é um outro problema, e este seria um dos erros pelos quais normalmente não somos capazes de resolver a aporia em questão na filosofia de Nietzsche. A questão da autonomia não passaria pela questão da consciência, mas sim pelo conceito de criação. Em poucas palavras: se a lei que comanda a ação pode ser criada no interior da trama de afetos que constituem o homem, podemos falar em liberdade enquanto autonomia, mas não consciente. Essa tese, porém, não convenceu muitos entre os ouvintes. De fato apenas se desloca o problema, mas a questão do determinismo continua, já que, retomando o argumento de Scarlet, o que se passa no homem, enquanto configuração de forças e pulsões que criam leis, tem o mesmo estatuto daquilo que se passa na natureza em geral, e é regido pela mesma necessidade.

Paralelamente a este atelier tivemos as comunicações de Andrea Bertino (“Instinto come maschera della virtù nel Crepuscolo degli Idoli”) e Vania Azeredo (“Monde vrai et éternel retour: de l'intitution à la destitution de l'idee”).

A última palestra do dia ficou por conta de Andrea Urs Sommer, um dos grandes nomes da Nietzsche-Forschung atual. Ele faz parte do grupo de pesquisadores responsáveis pela composição de um comentário integral à obra publicada de Nietzsche, um projeto que começará a ser publicado em 2012, se não me engano. Sendo assim, sua comunicação tratou do estado atual de seu comentário do CI, e da atividade do comentador em geral. Acentuou-se a necessidade de tratar a obra de Nietzsche efetivamente como obra e de levar a sério a vontade que está na base do conjunto de seus livros. Segundo Sommer, os comentários existentes não levam em conta muitos elementos importantes e não cumprem algumas condições fundamentais para a constituição de um comentário integral, como por exemplo a história da recepção das obras de Nietzsche. No caso particular do comentário ao CI, ele mencionou que a unidade orgânica que encontramos em muitos livros em aforismos de Nietzsche não é dada de forma evidente no caso deste escrito de 1888. Há ali uma permanente variação das formas, dos estilos, dos motivos, um desafio ao leitor, que deve interpretar, sobretudo, a paisagem da escrita. Dificuldade que cresce, na medida em que confrontamos essa ausência de unidade ao conceito, utilizado por Nietzsche, de décadence do estilo, que caracterizaria exatamente essa ausência. Em linhas gerais, Sommer falou de dois tipos de comentário: o Übersichtskommentar (comentário para uma visão geral), e o Stellungskommentar (comentário local, temático). O primeiro se preocuparia com os bastidores da composição da obra, as fontes, as concepções de base, a história da recepção e as informações essenciais da obra como um todo. O segundo seria uma espécie de instrumento para uma interpretação e uma leitura contínua da filosofia do autor. Devido ao caráter de certa forma monadológico da obra de Nietzsche, um comentário dessa natureza pode virar uma “explicação do universo”. Dificuldade que deve ser enfrentada, como foi colocado por um dos professores e pesquisadores entre os ouvintes, a saber, como lidar em termos práticos com o comentário? Deve-se comentar tudo, cada noção, cada possível referência, na tentativa de exaurir o horizonte temático que deu origem a um determinado pensamento? Escreveríamos para cada aforismo ou cada conceito importante de Nietzsche mais de 500 páginas de comentário. E se não, como fazer a escolha relativa ao problema: o que comentar? o que considerar? E depois, frente à infinidade de comentários e diferentes interpretações, devemos comentar também os próprios comentários? Silvio Pfeuffer também colocou a questão sobre a relevância do comentário para a interpretação do pensamento do autor. No fim das contas, o comentário ajuda realmente na compreensão e na interpretação ou pode ele também vir a empobrecer e desintegrar o pensamento a ser transmitido? Sommer se mostrou cético frente à questão se devemos comentar tudo. De fato é preciso estabelecer limites e considerar os comentários já feitos, mas finalmente ele não soube como responder à questão. Quanto à questão se devemos comentar comentários, sua resposta foi positiva. Com efeito, cada novo comentário estabelece uma nova interpretação, e as interpretações se constroem mutuamente. Finalmente, à questão de por quê o Nachlass não entrou no projeto, a resposta foi inicialmente pragmática: um tal projeto demandaria no mínimo mais 15 anos de trabalho. Mas não haveria por quê não levá-lo à cabo, no fim das contas.

O segundo dia do encontro contou com mesas paralelas durante todo o dia. A mesa da parte da manhã que assisti foi composta por Silvio Pfeuffer (Alemanha), Jorge Viesenteiner (Brasil), Blaise Benoit (França) e Marco Parmaggiani, e tinha como título: “A forma de vida humana e seu porvir”. O tema comum foi a vida, suas valorações e sua possível justificação. Pfeuffer apresentou a comunicação: “Extemporaneidade como recusa do direito à vida”, a partir do polêmico aforismo 36 de “Incursões de um extemporâneo”. Ele chamou atenção para a retórica do aforismo, não no sentido de uma interpretação “amenizada” da polêmica da morte e do suicídio ali presente (como quando dizemos de uma frase que ela é retórica para esvaziá-la de seu conteúdo radical), mas no sentido de insistir na motivação de Nietzsche de trazer o leitor a uma reflexão existencial radical, ao confrontá-lo com uma determinada descrição da morte “sadia” através de argumentos que o leitor intuitivamente aceitaria (como a ideia de morrer no tempo certo, com claridade e alegria, em meio aos parentes e entes queridos), mas que, no contexto, não servem senão para justificar uma ideia que não estamos tão dispostos a aceitar. A descrição oferecida da morte “sadia” corresponde às nossas expectativas intuitivas com relação à morte. Mas sua inserção estratégica justifica exatamente a reflexão acerca da ideia de que uma vida decadente não deve ser levada adiante. Durante a discussão, chamou-se atenção para o fato de que o interlocutor de Nietzsche nesse aforismo pode ser ele mesmo, já que falar sobre a vida e sobre as valorações nela implicadas pressupõe sempre um falar a partir de uma interioridade e uma reflexividade fundamentais, pressupõe uma interpretação das condições de vida de si mesmo na avaliação daquilo que será chamado “direito à vida”. Enrico Muller, na discussão, mencionou ainda o fato de que a decisão para o suicídio, no caso de uma vida decadente, pode conter força o suficiente, enquanto decisão existencial radical, para rejustificar toda a existência e conceder novamente o direito à continuidade da vida.

Marco Parmeggiani (“Espírito trágico e pessimismo em CI”) falou sobre os conceitos de belo e feio a partir de sua reinserção no nível da fisiologia, como sensações fisiológicas agradáveis, ou desagradáveis e debilitantes. Falou ainda, a respeito do trágico, sobre como é possível fazer arte como estimulante de vida se utilizando de elementos contrários, em certo sentido debilitantes, e também de uma nova perspectiva na interpretação da arte trágica que a vê não mais como estimulante, mas como narcótico. Nesse sentido, seriam os fracos que então setiriam um estímulo ao ver o sofrimento de grandes heróis.

A penúltima comunicação da manhã foi do brasileiro Jorge Viesenteiner: “O valor da vida não pode ser estimado: uma interpretação contextual do aforismo 2 do capítulo “O problema de Sócrates” de CI”. Visenteiner retomou um dos problemas que já haviam sido tratados no encontro, notadamente na palestra de Scarlet Marton, a saber, o problema da incomensurabilidade da vida. Tomando a imagem de Sócrates a partir de uma perspectiva semiótica, na qual o personagem serviria para incorporar a hipótese de Nietzsche sobre a impossibilidade de um juízo de valor dotado de sentido sobre vida, ele insistiu na tese de que um juízo dessa natureza não é nem verdadeiro nem falso, mas sim sintomático e não repousa senão sobre uma ingenuidade extrema por parte daqueles que pretendem ver objetividade num juízo dessa natureza. Daí a desconfiança de Nietzsche contra a sabedoria dos sábios, na medida em que estes não seriam capazes de ver a ingenuidade e o caráter absolutamente parcial de suas avaliações da vida. Seu consenso seria o sintoma de uma estupidez. A partir do termo consenso, Visenteiner se refere ainda ao aforismo 354 da GC, indicando que um consenso implica sempre uma comunidade, uma comunitaridade, uma vulgarização. Haveria aí então um horizonte comum de vivência da necessidade (Not), da miséria de vida, da falta. Novamente temos a ideia de um deslocamento de um horizonte epistemológico rumo a um horizonte semiótico / sintomatológico. Durante a discussão chamou-se a atenção para o fato de que somos sempre não apenas tentados ao julgamento, mas não podemos mesmo viver sem julgar. Visenteiner concorda com a objeção, mas esclarece que, nesse caso, os julgamentos não se referem à vida enquanto tal, mas às avaliações sobre a vida. Enquanto totalidade, a vida permanece incomensurável.

Blaise Benoit encerrou a mesa da manhã com a apresentação de seu trabalho sobre o aforismo 32 de “Incursões de um extemporâneo”: “O que justifica o homem é sua realidade, ela o justificará eternamente”, tratando detalhadamente do conceito de justificação em várias passagens da obra de Nietzsche e relacionado-o às acepções teológicas e estéticas. O título de sua comunicação foi: “De Sócrates e Lutero à Dionisos e Zaratustra”: a “Rechtfertigung” na ordem da nova linguagem”. Em linhas gerais, suas teses foram: 1. inicialmente poderíamos considerar que não pode haver lugar para a “Rechtfertigung” na filosofia de Nietzsche, já que: a) “rechtfertigen” provem genealogicamente da aceitação primeira de uma objeção moral face à existência, o que é incompatível com o “dizer sim” à vida, em todos os seus aspectos, para além do bem e do mal; b) “rechtfertigen” estaria muito próximo do campo semântico da legitimação, no sentido de fundado no direito, o que não é a perspectiva de Nietzsche; c) “rechtfertigen” se situaria inicialmente na direção contrária do trágico; d) a noção é muito próxima da teologia, no sentido da passagem do verbo “rechtfertigen” ao substantivo “Rechtfertigung” que possui um uso propriamente teológico e teria uma relação estrutural com a noção de “Erlösung” (redenção); 2. Em todo caso, há uma reapropriação de Nietzsche da noção de justificação na perspectiva de uma nova linguagem, que implica exatamente o conceito de justificação estética, como apresentado, por exemplo, em NT: “somente como fenômeno estético a existência e o mundo são eternamente justificados” (af. 5). Aqui, a justificação concerne a totalidade da existência e se constitui como uma celebração ativa da vida. Nesse contexto, ela mantém ainda uma relação com a noção de redenção (Erlösung), como pode ser constatado em NT, “Tentativa de auto-crítica”, 5. Segundo Benoit, entretanto, há em Nietzsche uma passagem do “rechtfertigen-erlösen” (justificação como redenção), ao “rechtfertigen-bejahen” (justificação como afirmação), que tem Zaratustra como anunciador. O objetivo da comunicação foi, portanto, mostrar como podemos ler o aforismo 32 de CI “Incursões de um extemporâneo” tendo como pano de fundo todo o horizonte semântico de utilização do conceito de Rechfertigung em Nietzsche. Particularmente, porém, senti falta de uma análise do aforismo 107 de GC, onde a noção de “existência como fenômeno estético” é retomada, porém a ideia de justificação é abandonada (“enquanto fenômeno estético a existência ainda nos é suportável”). Caberia ali uma hipótese sobre o motivo do abandono de Nietzsche da noção de justificação nesse aforismo.