terça-feira, 4 de maio de 2010

Resenha do III Congresso Internacional do GIRN (Parte 1)

Ocorreu, entre os dias 28 e 30 de abril, na cidade de Pisa, o III Congresso Internacional do GIRN: Grupo Internacional de Investigações sobre Nietzsche, cujo tema foi: "Leituras do Crepúsculo dos Ídolos". Os últimos dois encontros, que ocorreram em março e julho de 2009, traziam como tema "Leituras da Gaia Ciência" e "Nietzsche pensador da política? Nietzsche pensador do social?" respectivamente. Reunindo pesquisadores de várias partes do mundo, incluindo um número considerável de brasileiros, o encontro tornou possível a discussão de vários temas e problemas em torno de questões, presentes de forma marcante na obra, relativas à moral, à ciência, à psicologia, à fisiologia da arte, além de trazer à público algumas informações importantes sobre o estado da Nietzsche-Forschung internacional hoje em dia. Esta resenha tem por objetivo oferecer uma visão geral de alguns dos temas debatidos no encontro, a partir da perspectiva dos interesses teóricos deste que vos escreve.

Após a saudação dos anfitriões que acolheram o encontro nos espaços da Faculdade de Letras e Filosofia de Pisa, Patrik Wotling, professor na Universidade de Reims e referência na França na pesquisa de Nietzsche, falou um pouco sobre estrutura do GIRN, o significado do caráter internacional das atividades do grupo, e sublinhou a importância de se conhecer todas as línguas que fazem parte oficialmente do grupo (alemão, francês, inglês, português, espanhol e italiano) para que haja uma troca efetiva entre os pesquisadores dos diversos países. Particular atenção foi concedida ao Brasil como importante pólo da Nietzsche-Forschung atual, o que deu ocasião para o anúncio de que Scarlet Marton passaria a fazer parte da presidência do GIRN. Foi anunciada também a participação do grupo no programa Europhilosophie (programa do qual faz parte este que vos escreve), o que terá como resultado o lançamento de uma plataforma de publicações online de trabalhos, artigos, monografias e anais de congressos no site do programa. Pretende-se implementar uma estrutura editorial diretamente vinculada ao programa, com um comitê científico de alto nível, assim como uma editora virtual que portará o nome "Édition d'Ariane", e que será acessível no site http://www.europhilosophie.eu/. Essa iniciativa abrirá espaço para pesquisadores publicarem seus trabalhos numa revista diretamente associada do GIRN em todas as línguas mencionadas acima.

Após o tratamento das questões institucionais, o trabalho temático é aberto com a palestra, em língua francesa, do novo membro da presidência do GIRN, Scarlet Marton, cujo título foi: "À procura de um critério de avaliação das avaliações. As noções de vida e valor em Nietzsche." Trabalhando principalmente sobre o aforismo 2 do capítulo « O problema de Sócrates » e o aforismo 5 do capítulo "Moral como contra-natureza", ela tentou mostrar a diferença entre as abordagens dessas duas passagens com relação ao problema de um possível critério de avaliação das avaliações, notadamente das avaliações relativas ao valor da vida. O argumento parte da insistência de Nietzsche em abandonar o ponto de vista epistemológico na análise do problema em prol de um ponto de vista axiológico / fisiológico, que se pergunta, a partir da perspectiva do psicólogo, pela origem das avaliações. Assim, a pergunta pelo valor da vida é reinserida num plano de análise sintomatológico: os julgamentos de valor sobre a vida não são senão sintomas de um tipo de vida, no caso da figura de Sócrates, de um tipo de vida doente. E Sócrates se sabia doente, de forma que ele termina por se suicidar. Este é o argumento do capítulo "O problema de Sócrates". O capítulo "Moral como contra-natureza" tem também por base da crítica a noção de negação da vida. Segundo Scarlet, Nietzsche retorna aqui à problemática de Sócrates relativa ao julgamento de valor sobre a vida, elegendo, porém, como oponente, o cristianismo. A idéia de que o problema do valor da vida é um problema inacessível é retomada, porém um novo elemento é colocado no argumento. Trata-se da menção a um julgamento que fosse capaz de abarcar todas as perspectivas sobre a vida, o que, para Scarlet Marton, insere o perspectivismo na análise presente na passagem em questão, o que não encontramos na passagem tratada anteriormente. Ao retomar ali a noção de valor, Nietzsche estaria, portanto, apresentando também a sua noção de ser-humano, já que, ao dizer que para tocar o problema do valor da vida seria preciso conhecê-la tão bem quanto todos aqueles que já viveram, ele estaria sugerindo que a pluralidade, melhor dizendo a totalidade de perspectivas de julgamento de valor sobre a vida estaria fundada sobre uma pluralidade de configuações pulsionais que determinam o ser-humano enquanto tal. Nesse sentido, é a pluralidade de pulsões, a multiplicidade de forças que avaliam. Haveria então um continumm entre homem e natureza: ambos se constituem enquanto configurações de forças. Tudo o que ocorre na esfera da vida em geral tem o mesmo estatuto daquilo que ocorre no homem. Conclusão: se por um lado a análise do problema do valor da vida no aforismo 2 de "O problema de Sócrates" apresenta apenas um deslocamento crítico de um nível epistemológico para um nível axiológico / fisiológico, o aforismo 5 de "Moral como contra-natureza" apresentaria, por sua vez, um novo ponto de vista para a análise do problema a partir da noção de perspectivismo, sendo que aqui Nietzsche colocaria em jogo uma concepção positiva (não somente crítica) do ser-humano.

Na sequência do encontro tivemos a apresentação de Patrik Wotling, também em francês, sobre o tema: "Duas idiossincrasias e quatro grandes erros", que tratou dos temas da psicologia do erro e da crítica aos pré-conceitos filosóficos. Os textos de base foram os capítulos "A razão na filosofia" e "Os quatro grandes erros" de CI. Inicialmente Wotling chama a atenção para o modo específico de pensar e de argumentar que encontramos nas obras de Nietzsche. Ele não se contenta em refutar ou recusar teses, ele reorganiza toda a lógica argumentativa, o que teria uma relação intrínseca com sua concepção de psicologia e com seu fazer filosofia enquanto psicologia. Fazendo menção ainda ao caráter das outras obras de Nietzsche, onde o filósofo se ocupa em argumentar mais lentamente e longamente sobre os temas, como em HH ou ABM sobre a lógica e os pré-conceitos dos filósofos, Wotling acentua o caráter particular de CI como uma espécie de versão econômica de diversas teses do filósofo, na qual Nietzsche teorisa muito pouco, de forma que as linhas de argumentação possuem uma força particular, como numa espécie de resumo programático. No que tange a maneira de filosofar dos filósofos, o que é acentuado é a raíz, ou as raízes, de seus erros e idiossincracias. Haveria, basicamente, duas distorções básicas no modo tradicional de fazer filosofia: ausência de senso histórico e confusão entre aquilo que vem primeiro e aquilo que vem por último (assim traduz Wotling o título do primeiro capítulo de HH: "Von den ersten und letzten Dingen" em relação ao início do aforismo 4 de "A razão na filosofia" de CI). Além das duas distorções, haveria ainda os quatro grandes erros: confusão entre a causa e a consequência (corresponde ao aforismo 1), crença na causalidade (corresponde ao aforismo 3), causas imaginárias (aforismo 4) e vontade livre (aforismo 7). O argumento de base de Wotling é a necessidade de uma leitura dupla dos capítulos em questão, de forma que o capítulo "Os quatro grandes erros" deveria complementar a leitura do capítulo "A razão na filosofia". Tomando como fio condutor o primeiro aforismo de "Os quatro grandes erros", que trata da inversão ou confusão entre causa e efeito, Wotling sublinha a complexidade que estaria oculta na inserção aparentemente despropositada da noção de "vontade livre" no final do aforismo. Essa noção remeteria ao parágrafo 4 de "A razão na filosofia" e deveria ser considerada como chave para a interpretação do aforismo e de todo o capítulo em questão. O que Nietzsche criticaria seria exatamente e sobretudo a concepção de Ursache (causa) como causa livre, a partir da noção de vontade livre. Wotling apresenta então a noção de pulsão causal (Ursachentrieb), inserida por Nietzsche no aforismo 4 de "Os quatro grandes erros", explicando sua relação com o esquema lógico necessário ao processo de percepção, o esquema lógico que faz intervir imediatamente um elemento como causa por ocasião da experiência perceptiva. Duas questões, porém, que ao meu ver fizeram falta em sua apresentação, são: 1. a relação entre o esquema lógico de relação causal e a constituição da consciência (af. 4), e 2. a explicação de Nietzsche da Ursachentrieb como estando fundada no sentimento do medo, o que ele chama de "explicação psicológica" (af. 5).

Após uma pausa, Luis Santiago Guervós tomou a palavra para apresentar seu trabalho: "A fisiologia da arte como estratégia antimetafísica". A apresentação foi feita em espanhol e eu confesso que não dediquei muita atenção à comunicação, já que num encontro como este é preciso selecionar o que será objeto de escuta atenta, pois a carga de trabalhos é imensa. Esta resenha é, nesse sentido, absolutamente unilateral. Entretanto, para dizer em poucas palavras, sua comunicação tratou da questão da nova perspectiva da estética nietzscheana em CI a partir dos aforismos 8 a 11, 19 e 20 do capítulo "Incursões de um extemporâneo", inserindo essa questão nas tramas da noção de vontade de poder, entendida ali como "acontecimento interior" que é então transposto numa forma de superprodução estética fundada sobre "valores" biológicos e fisiológicos.

Em seguida a palestra de Marcos Brusotti, intitulada "Genealogia e psicologia no Crepúsculo dos ídolos". Gostaria de poder apresentar com mais clareza o argumento geral de sua comunicação, já que ele se baseia numa análise sutil do campo semântico de utilização de determinados conceitos na GM e no CI. Porém, devido a minha evidente dificuldade em entender bem o italiano, não captei senão algumas peças dispersas da argumentação, e ainda assim graças a ajuda do André Muniz, que apresentou também no penúltimo dia do encontro, e que estava ao meu lado esforçando-se em me fazer compreender alguns pontos da argumentação do Brusotti. Em todo caso, sua comunicação tratou da noção de ócio e atividade, mais especificamente com relação à expressão presente no prefácio à obra em questão: ócio de um psicólogo. A questão condutora era saber se a GM poderia ser inserida no mesmo contexto filosófico do ócio do psicólogo no qual teve origem CI. Para isso, Brusotti se dedica inicialmente a uma análise do campo semântico das duas obras, afirmando que em GM nos deparamos com termos que não aparecem em CI, quais sejam: "ativo", “reativo”, “atividade”, “agente”, “agir”. Entretanto, CI trabalha com uma noção, também presente em CW, que guarda uma semelhança semântica com o contexto de GM. Trata-se da noção de “Reagieren” (reagir) e “Nicht-Reagieren” (não-reagir). Na verdade haveria uma certa modificação na compreensão e na utilização do termo “reagir” em CI, se pensarmos no uso quase sistemático que Nietzsche faz do termo “reativo” em GM. Em CI “Reagieren” é associado a um estado fisiológico de degenerescência (af. 2 de “Moral como contra-natureza”), na medida em que o que é sublinhado é sua oposição à capacidade de não reagir. Segundo Nietzsche, uma natureza que não é capaz de não reagir imediatamente a um estímulo (Brusotti chama a atenção aqui para a dupla negação), ou seja, que não é capaz de tomar decisões com relação a seus afetos, que necessita portanto de uma dissipação imediata da energia vinculada a um estímulo, é uma natureza degenerescente. O ressentido teria exatamente essa estrutura fisiológica. Ao contrário, uma natureza forte seria caracterizada por uma certa lentidão da reação, por uma prudência decidida e prolongada, o que a insere no campo semântico do termo “ócio” que funciona como termo chave para a caracterização da atividade do psicólogo. A noção de “incapacidade de não reagir” vinculada a uma natureza degenerescente, Nietzsche a retira, segundo Brusotti, do médico francês Charles Féré, cujos estudos mostram a relação intrínseca entre os sintomas nevróticos e a necessidade de reação imediata a um estímulo. Segundo Nietzsche, o gênio teria uma natureza nevrótica. Cria-se assim uma oposição entre figuras do tipo: gênio / psicólogo. Como última observação, Brusotti associa ainda a idéia de incapacidade de não reagir ao conceito de Auslösung, do verbo auslösen: desencadear, deflagrar, ocasionar. O conceito desempenha um papel importante na filosofia do último Nietzsche e, segundo Brusotti, serve aqui para designar uma reação intensa e qualitativamente maior do que a quantidade de energia originalmente contida no estímulo. A contextualização semântica conduz a conclusão de que, apesar da diferença entre os termos e conceitos utilizados em GM (aktiv, reaktiv, Aktivität) e CI (Reagieren, Nicht-Reagieren, Auslösung) para qualificar determinados tipos e caracerizar a atividade genealógica e a atividade do psicólogo respectivamente, podemos inserir as duas obras num mesmo contexto filosófico.

A parte da tarde inaugurou um formato novo de comunicação no encontro: o atelier. Na verdade houveram ainda comunicações paralelas, de forma que não pude estar presente em todas as palestras. Em todo caso, o formato do atelier é simples e direcionado mais para a discussão do que para a apresentação em si. Dois palestrantes integram uma mesa juntamente com um mediador, um tema é proposto, ambos fazem uma curta apresentação de sua interpretação do tema, e incia-se o debate entre eles e a discussão com os ouvintes. Antes do primeiro atelier, entretanto, tivemos a palestra de Jesus Conil sobre o tema: “O que significa progresso no sentido de Nietzsche?”. Porém, esta foi uma das palestras excluídas da minha escuta atenta. Foram tratados temas como o antidarwinismo de Nietzsche e a relação entre niilismo e progresso.

Após a palestra, o atelier. Fizeram parte do primeiro atelier, que se desenrolou em inglês, Tom Bailey e João Constâncio. O tema geral teria sido a questão da vontade e da liberdade, sendo que Bailey deveria apresentar a comunicação “Kantiano ou anti-kantiano? Nietzsche sobre a vontade” e João Constâncio a comunicação “A ideia de liberdade em CI”. Entretanto, desde o início da fala de Bailey notou-se que o tema de sua comunicação seria outro. O que ele apresentou foi a relação de Nietzsche com algumas noções kantianas, como a rejeição da noção de uma realidade transcendente, assim como a rejeição da ética kantiana, mas acentuou também o diálogo construtivo com a tradição transcendental principalmente através de African Spir. A tese geral é que o Nietzsche do período intermediário compartilha a ideia de Spir da impossibilidade de julgamentos empíricos, já que todo julgamento implica um princípio ontológico de identidade que não pode, em sentido forte, ser encontrado no mundo da experiência. Segundo Bailey, haveria nessa concepção a ideia de que a realidade é de certa forma acessível, mas não é passível de ser inserida na estrutura sintática dos julgamentos, ou seja, não podemos fazer julgamentos empíricos sobre o mundo. Bailey sustenta, entretanto, que o último Nietzsche rejeita o modelo de Spir e aceita uma forma de realismo empírico que implica tanto a acessibilidade ao mundo quanto a possibilidade dos julgamentos a seu respeito. A uma questão colocada por Jaanus Soovali, da Universidade de Tartu (Estonia), sobre o que significaria "acessibilidade ao real," Bailey responde, utilizando um exemplo mais que simples, que quando dizemos de um microfone que ele é negro, etc. falamos efetivamente de características da coisa, fundamento sobre o qual toda a ciência se desenvolve. Tivemos uma pequena conversa durante a pausa, na qual eu e Jorge Viesenteiner, professor da PUC-Paraná, recolocamos-lhe a questão, referindo-nos ao aforismo 354 da GC sobre a relação entre consciência, linguagem e fenomenismo. Ele disse então que levando em consideração este aforismo sua tese se torna realmente difícil de sustentar, e que neste caso este aforismo deveria ficar fora do jogo. Mas mesmo dentro do contexto das reflexões de CI, retruquei, podemos encontrar argumentos contra esta tese, por exemplo na ideia, presente nos aforismos 2 e 5 de “A razão na filosofia”, de que a linguagem e as categorias da razão falsificam necessariamente. Na medida em que a ciência se funda sobre essas categorias e se estrutura através da linguagem, ela engendra necessariamente o erro. Nesse caso, porém, teríamos que reconsiderar o significado da noção de “acesso ao real” e pensar na possibilidade de uma experiência pura, para a partir daí tentar sustentar novamente a tese de um Nietzsche realista empírico.

Devido à discontinuidade dos temas apresentados nesse primeiro atelier, a discussão ficou de certa forma fragmentária, sendo que os temas abordados acima apareceram somente no final da discussão. Quase toda a discussão girou na verdade em torno da comunicação de João Constâncio sobre a ideia de liberdade em CI. Em linhas gerais, seu argumento parte da aporia constatável em vários textos nietzscheanos entre afirmação de um determinismo e aceitação de uma noção de liberdade e autonomia. Entretanto, a oposição necessidade / vontade livre, segundo Constâncio, não dá conta do problema. Não se trata de uma vontade livre, mas sim de uma noção de autonomia que quer dizer: dar a si mesmo suas leis, criar suas leis. À questão se a consciência pode determinar a ação, Constâncio responde que a consciência na verdade é um outro problema, e este seria um dos erros pelos quais normalmente não somos capazes de resolver a aporia em questão na filosofia de Nietzsche. A questão da autonomia não passaria pela questão da consciência, mas sim pelo conceito de criação. Em poucas palavras: se a lei que comanda a ação pode ser criada no interior da trama de afetos que constituem o homem, podemos falar em liberdade enquanto autonomia, mas não consciente. Essa tese, porém, não convenceu muitos entre os ouvintes. De fato apenas se desloca o problema, mas a questão do determinismo continua, já que, retomando o argumento de Scarlet, o que se passa no homem, enquanto configuração de forças e pulsões que criam leis, tem o mesmo estatuto daquilo que se passa na natureza em geral, e é regido pela mesma necessidade.

Paralelamente a este atelier tivemos as comunicações de Andrea Bertino (“Instinto come maschera della virtù nel Crepuscolo degli Idoli”) e Vania Azeredo (“Monde vrai et éternel retour: de l'intitution à la destitution de l'idee”).

A última palestra do dia ficou por conta de Andrea Urs Sommer, um dos grandes nomes da Nietzsche-Forschung atual. Ele faz parte do grupo de pesquisadores responsáveis pela composição de um comentário integral à obra publicada de Nietzsche, um projeto que começará a ser publicado em 2012, se não me engano. Sendo assim, sua comunicação tratou do estado atual de seu comentário do CI, e da atividade do comentador em geral. Acentuou-se a necessidade de tratar a obra de Nietzsche efetivamente como obra e de levar a sério a vontade que está na base do conjunto de seus livros. Segundo Sommer, os comentários existentes não levam em conta muitos elementos importantes e não cumprem algumas condições fundamentais para a constituição de um comentário integral, como por exemplo a história da recepção das obras de Nietzsche. No caso particular do comentário ao CI, ele mencionou que a unidade orgânica que encontramos em muitos livros em aforismos de Nietzsche não é dada de forma evidente no caso deste escrito de 1888. Há ali uma permanente variação das formas, dos estilos, dos motivos, um desafio ao leitor, que deve interpretar, sobretudo, a paisagem da escrita. Dificuldade que cresce, na medida em que confrontamos essa ausência de unidade ao conceito, utilizado por Nietzsche, de décadence do estilo, que caracterizaria exatamente essa ausência. Em linhas gerais, Sommer falou de dois tipos de comentário: o Übersichtskommentar (comentário para uma visão geral), e o Stellungskommentar (comentário local, temático). O primeiro se preocuparia com os bastidores da composição da obra, as fontes, as concepções de base, a história da recepção e as informações essenciais da obra como um todo. O segundo seria uma espécie de instrumento para uma interpretação e uma leitura contínua da filosofia do autor. Devido ao caráter de certa forma monadológico da obra de Nietzsche, um comentário dessa natureza pode virar uma “explicação do universo”. Dificuldade que deve ser enfrentada, como foi colocado por um dos professores e pesquisadores entre os ouvintes, a saber, como lidar em termos práticos com o comentário? Deve-se comentar tudo, cada noção, cada possível referência, na tentativa de exaurir o horizonte temático que deu origem a um determinado pensamento? Escreveríamos para cada aforismo ou cada conceito importante de Nietzsche mais de 500 páginas de comentário. E se não, como fazer a escolha relativa ao problema: o que comentar? o que considerar? E depois, frente à infinidade de comentários e diferentes interpretações, devemos comentar também os próprios comentários? Silvio Pfeuffer também colocou a questão sobre a relevância do comentário para a interpretação do pensamento do autor. No fim das contas, o comentário ajuda realmente na compreensão e na interpretação ou pode ele também vir a empobrecer e desintegrar o pensamento a ser transmitido? Sommer se mostrou cético frente à questão se devemos comentar tudo. De fato é preciso estabelecer limites e considerar os comentários já feitos, mas finalmente ele não soube como responder à questão. Quanto à questão se devemos comentar comentários, sua resposta foi positiva. Com efeito, cada novo comentário estabelece uma nova interpretação, e as interpretações se constroem mutuamente. Finalmente, à questão de por quê o Nachlass não entrou no projeto, a resposta foi inicialmente pragmática: um tal projeto demandaria no mínimo mais 15 anos de trabalho. Mas não haveria por quê não levá-lo à cabo, no fim das contas.

O segundo dia do encontro contou com mesas paralelas durante todo o dia. A mesa da parte da manhã que assisti foi composta por Silvio Pfeuffer (Alemanha), Jorge Viesenteiner (Brasil), Blaise Benoit (França) e Marco Parmaggiani, e tinha como título: “A forma de vida humana e seu porvir”. O tema comum foi a vida, suas valorações e sua possível justificação. Pfeuffer apresentou a comunicação: “Extemporaneidade como recusa do direito à vida”, a partir do polêmico aforismo 36 de “Incursões de um extemporâneo”. Ele chamou atenção para a retórica do aforismo, não no sentido de uma interpretação “amenizada” da polêmica da morte e do suicídio ali presente (como quando dizemos de uma frase que ela é retórica para esvaziá-la de seu conteúdo radical), mas no sentido de insistir na motivação de Nietzsche de trazer o leitor a uma reflexão existencial radical, ao confrontá-lo com uma determinada descrição da morte “sadia” através de argumentos que o leitor intuitivamente aceitaria (como a ideia de morrer no tempo certo, com claridade e alegria, em meio aos parentes e entes queridos), mas que, no contexto, não servem senão para justificar uma ideia que não estamos tão dispostos a aceitar. A descrição oferecida da morte “sadia” corresponde às nossas expectativas intuitivas com relação à morte. Mas sua inserção estratégica justifica exatamente a reflexão acerca da ideia de que uma vida decadente não deve ser levada adiante. Durante a discussão, chamou-se atenção para o fato de que o interlocutor de Nietzsche nesse aforismo pode ser ele mesmo, já que falar sobre a vida e sobre as valorações nela implicadas pressupõe sempre um falar a partir de uma interioridade e uma reflexividade fundamentais, pressupõe uma interpretação das condições de vida de si mesmo na avaliação daquilo que será chamado “direito à vida”. Enrico Muller, na discussão, mencionou ainda o fato de que a decisão para o suicídio, no caso de uma vida decadente, pode conter força o suficiente, enquanto decisão existencial radical, para rejustificar toda a existência e conceder novamente o direito à continuidade da vida.

Marco Parmeggiani (“Espírito trágico e pessimismo em CI”) falou sobre os conceitos de belo e feio a partir de sua reinserção no nível da fisiologia, como sensações fisiológicas agradáveis, ou desagradáveis e debilitantes. Falou ainda, a respeito do trágico, sobre como é possível fazer arte como estimulante de vida se utilizando de elementos contrários, em certo sentido debilitantes, e também de uma nova perspectiva na interpretação da arte trágica que a vê não mais como estimulante, mas como narcótico. Nesse sentido, seriam os fracos que então setiriam um estímulo ao ver o sofrimento de grandes heróis.

A penúltima comunicação da manhã foi do brasileiro Jorge Viesenteiner: “O valor da vida não pode ser estimado: uma interpretação contextual do aforismo 2 do capítulo “O problema de Sócrates” de CI”. Visenteiner retomou um dos problemas que já haviam sido tratados no encontro, notadamente na palestra de Scarlet Marton, a saber, o problema da incomensurabilidade da vida. Tomando a imagem de Sócrates a partir de uma perspectiva semiótica, na qual o personagem serviria para incorporar a hipótese de Nietzsche sobre a impossibilidade de um juízo de valor dotado de sentido sobre vida, ele insistiu na tese de que um juízo dessa natureza não é nem verdadeiro nem falso, mas sim sintomático e não repousa senão sobre uma ingenuidade extrema por parte daqueles que pretendem ver objetividade num juízo dessa natureza. Daí a desconfiança de Nietzsche contra a sabedoria dos sábios, na medida em que estes não seriam capazes de ver a ingenuidade e o caráter absolutamente parcial de suas avaliações da vida. Seu consenso seria o sintoma de uma estupidez. A partir do termo consenso, Visenteiner se refere ainda ao aforismo 354 da GC, indicando que um consenso implica sempre uma comunidade, uma comunitaridade, uma vulgarização. Haveria aí então um horizonte comum de vivência da necessidade (Not), da miséria de vida, da falta. Novamente temos a ideia de um deslocamento de um horizonte epistemológico rumo a um horizonte semiótico / sintomatológico. Durante a discussão chamou-se a atenção para o fato de que somos sempre não apenas tentados ao julgamento, mas não podemos mesmo viver sem julgar. Visenteiner concorda com a objeção, mas esclarece que, nesse caso, os julgamentos não se referem à vida enquanto tal, mas às avaliações sobre a vida. Enquanto totalidade, a vida permanece incomensurável.

Blaise Benoit encerrou a mesa da manhã com a apresentação de seu trabalho sobre o aforismo 32 de “Incursões de um extemporâneo”: “O que justifica o homem é sua realidade, ela o justificará eternamente”, tratando detalhadamente do conceito de justificação em várias passagens da obra de Nietzsche e relacionado-o às acepções teológicas e estéticas. O título de sua comunicação foi: “De Sócrates e Lutero à Dionisos e Zaratustra”: a “Rechtfertigung” na ordem da nova linguagem”. Em linhas gerais, suas teses foram: 1. inicialmente poderíamos considerar que não pode haver lugar para a “Rechtfertigung” na filosofia de Nietzsche, já que: a) “rechtfertigen” provem genealogicamente da aceitação primeira de uma objeção moral face à existência, o que é incompatível com o “dizer sim” à vida, em todos os seus aspectos, para além do bem e do mal; b) “rechtfertigen” estaria muito próximo do campo semântico da legitimação, no sentido de fundado no direito, o que não é a perspectiva de Nietzsche; c) “rechtfertigen” se situaria inicialmente na direção contrária do trágico; d) a noção é muito próxima da teologia, no sentido da passagem do verbo “rechtfertigen” ao substantivo “Rechtfertigung” que possui um uso propriamente teológico e teria uma relação estrutural com a noção de “Erlösung” (redenção); 2. Em todo caso, há uma reapropriação de Nietzsche da noção de justificação na perspectiva de uma nova linguagem, que implica exatamente o conceito de justificação estética, como apresentado, por exemplo, em NT: “somente como fenômeno estético a existência e o mundo são eternamente justificados” (af. 5). Aqui, a justificação concerne a totalidade da existência e se constitui como uma celebração ativa da vida. Nesse contexto, ela mantém ainda uma relação com a noção de redenção (Erlösung), como pode ser constatado em NT, “Tentativa de auto-crítica”, 5. Segundo Benoit, entretanto, há em Nietzsche uma passagem do “rechtfertigen-erlösen” (justificação como redenção), ao “rechtfertigen-bejahen” (justificação como afirmação), que tem Zaratustra como anunciador. O objetivo da comunicação foi, portanto, mostrar como podemos ler o aforismo 32 de CI “Incursões de um extemporâneo” tendo como pano de fundo todo o horizonte semântico de utilização do conceito de Rechfertigung em Nietzsche. Particularmente, porém, senti falta de uma análise do aforismo 107 de GC, onde a noção de “existência como fenômeno estético” é retomada, porém a ideia de justificação é abandonada (“enquanto fenômeno estético a existência ainda nos é suportável”). Caberia ali uma hipótese sobre o motivo do abandono de Nietzsche da noção de justificação nesse aforismo.

2 comentários:

  1. Aqui seguem os links para o programa e os resumos dos trabalhos apresentados:

    http://www.europhilosophie.eu/recherche/IMG/pdf/ci-girn-2010-30-03.pdf

    http://www.europhilosophie.eu/recherche/IMG/pdf/GIRN-colloque-nietzsche-avril-2010.pdf

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  2. Excelente resenha, pena que li só agora.

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