Acredito que esta carta nos revela um traço marcante da personalidade filosófica de Nietzsche (um traço que ainda não havia aparecido nas cartas anteriores que publicamos no blog) , e que este traço se insinua tanto na contramão quanto à revelia da atmosfera e do vocabulário próprios à filosofia de Schopenhauer, de quem Nietzsche se confessa neste momento um ardoroso e, em alguma medida, atormentado discípulo. Com vocês uma vez mais o jovem Nietzsche. Um bom final de carnaval a todos.
Rogério.
Carta enviada de Naumburg em 7 de Abril de 1866, ao amigo Carl von Gersdorff, em Görlizt. (KSB, 2: p. 119-123)
Querido Amigo:
Ocasionalmente somos tomados por momentos de uma serena contemplação, nos quais planamos acima de nossa própria vida, com um misto de alegria e tristeza, como aqueles belos dias de verão, que se estendem ampla e aprazivelmente sobre as colinas e cuja excelente descrição encontra-se em Emerson; e então a natureza atinge a sua plenitude, como ele diz; e nós dizemos: e então nos tornamos livres do encanto da vontade sempre vigilante, e então somos um olho puro, contemplativo, desinteressado. É nesta disposição de espírito, a mais desejável de todas, que eu pego da pena para responder à tua carta, tão rica de pensamentos e tão amigável. [...]
Três são as minhas distrações, ainda que ocasionais: meu Schopenhauer, a música de Schumann e, finalmente, passeios solitários. Ontem se anunciava uma tremenda tempestade no céu, eu subi apressadamente até a montanha próxima, chamada “Leusch” (talvez você saiba me dizer o significado desta palavra), onde encontrei uma choupana e um homem que acompanhado do filho abatia dois cabritos. A tempestade desabou violentamente, em meio a ventania e granizo; eu senti uma incomparável exaltação e percebi com clareza que nós só compreendemos bem a natureza quando nos refugiamos junto a ela, longe de nossos cuidados e apuros. O que era para mim o homem e seu atormentado querer! O que era para mim o eterno “Tu deves”, “Tu não deves”! Quão diferentes o raio, a ventania, o granizo, forças livres, sem ética! Quão livres e poderosas são tais forças, vontade pura, sem as turvações do intelecto! [...]
Hoje ouvi um engenhoso sermão de Wenkel sobre o Cristianismo, “a fé que sobrepujou o mundo”, de uma arrogância insuportável em relação a todos os povos que não são cristãos, mas ainda assim muito matreiro. A todo o momento ele substituía a palavra cristianismo por uma outra, resultando sempre em um sentido correto, mesmo para a nossa concepção. Quando se substitui a sentença “o cristianismo sobrepujou o mundo” pela sentença “o sentimento do pecado, em suma, uma necessidade metafísica sobrepujou o mundo”, então isso não tem para nós nada de escandaloso; mas é preciso ser consequente e dizer: “os verdadeiros hindus são cristãos”, mas também: “os verdadeiros cristãos são hindus”. Mas no fundo, a permuta de tais palavras e conceitos, fixados sabe-se lá quando, não é de todo honesta, pois os fracos de espírito se tornam completamente desorientados. Se o cristianismo significa “fé em um evento histórico ou em uma pessoa histórica”, então eu nada tenho a ver com este cristianismo. Se o cristianismo significa, contudo, tão somente necessidade de redenção, então eu posso estimá-lo sumamente, e sequer levarei a mal que ele procure disciplinar os filósofos; pois estes são muito poucos em comparação com a monstruosa massa dos necessitados de redenção, que de mais a mais são feitos da mesma matéria. Sim, mesmo que todos que se ocupam de filosofia fossem discípulos de Schopenhauer! Mas é com demasiada frequência que por trás da máscara do filósofo se oculta a alta majestade da “vontade”, que procura trabalhar para a sua própria glorificação. Se os filósofos governassem, então τό πλήτος [o povo] estaria perdido; se esta massa governa, como acontece agora, então competirá sempre ainda ao filósofo, raro in gurgite vasto [poucos no vasto oceano], τίχα άλλων [separado dos demais], como Ésquilo, φρονέειν [penso por conta própria].
Ao mesmo tempo, contudo, nos é extremamente penoso conter nossas ainda jovens e vigorosas ideias schopenhauerianas, exprimindo-as apenas pela metade e, para completar, ter sempre sobre o coração o fardo desta malfadada diferença entre teoria e prática. Para isso eu não sei de nenhum consolo; pelo contrário, sou eu mesmo necessitado de consolo. A mim me parece que deveríamos julgar o cerne da questão de forma mais branda. Pois ele se imiscui também nesta colisão.
Passe bem, querido amigo. Saudações aos teus. Lembranças da minha família. E ficamos acertados! Tão logo nos reencontremos haveremos de rir – e com razão.
Do amigo,
Friedrich Nietzsche.
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