domingo, 20 de março de 2011

Da série: uma carta aos domingos

A carta que preparei para este domingo remete a um traço da personalidade filosófica de Nietzsche ao qual fiz referência em outros posts deste blog: trata-se da disposição reformista. Esta carta corrobora uma tese que não me parece controversa, ainda que ela não receba sempre o devido destaque por parte dos intérpretes de Nietzsche: esta disposição reformista, assim como o ativismo que a caracteriza são traços marcantes desta complexa personalidade filosófica em formação, mas que só se tornam visíveis à medida em que os laços com Wagner e a identificação com a causa wagneriana se intensificam, o que ocorre com bastante rapidez após o primeiro contato, em novembro de 1868. Nos póstumos do início da década de 70 podemos identificar duas tendências importantes na reflexão de Nietzsche sobre a viabilidade de uma reforma da cultura: (1) a primeira delas entende que a filosofia terá um papel subordinado nesta reforma, e que caberá à arte o papel de protagonista; superestimar o papel da filosofia e desconsiderar o papel da arte teria sido o grande erro de Platão, a quem o jovem Nietzsche já atribui a ambição de se tornar legislador em uma reforma do estado grego rumo a uma constituição pan-helênica; (2) a segunda tendência conflita diretamente com a primeira, na medida em Nietzsche sugere que em uma cultura mais robusta, como foi a cultura grega em seu período trágico, a filosofia poderia ocupar o papel que na modernidade parece caber exclusivamente à arte. Um dos fios condutores dos estudos de Nietzsche sobre os filósofos pré-platônicos, talvez o grande fio condutor destes estudos, é o esforço de pensar a viabilidade prática da filosofia (como um componente da cultura) em um contexto cultural não marcado pela hipertrofia de um de seus elementos (o político, o cognitivo, o religioso ou o mítico). Nietzsche entende que os filósofos pré-platônicos são únicos porque eles viveram em um período em que havia um relativo equilíbrio entre estes componentes. Mas ao mesmo tempo Nietzsche identifica em vários destes filósofos o desejo de impor à Grécia uma reforma na direção de um estado pan-helênico. No estudo sobre os filósofos pré-platônicos Nietzsche diz com todas as letras que numa época mais robusta caberia ao filósofo o papel de grande protagonista do projeto de reforma da cultura, e é neste contexto mais favorável que ele se dispõe a pensar o valor do filósofo e seu lugar na hierarquia das formas de vida. Eu entendo que esta é uma das razões de porque a leitura que Nietzsche faz em Tribschen de uma das versões de seus estudos sobre estes filósofos tenha provocado em Wagner uma reação tão negativa (conferir o texto introdutório do prof. Ernani Chaves, assim como a carta traduzida por ele e publicada neste blog algumas semanas atrás). Subliminarmente, Nietzsche colocava em xeque a visão que o mestre defendia sobre as condições para a reforma da cultura e a atibuição ao artista do papel de protagonista absoluto.
A reação de Wagner não foi, contudo, a razão principal que levou Nietzsche a uma conclusão pessimista em relação à eficácia política do empreendimento reformista conduzido pela filosofia. Suas notas sobre os filósofos pré-platônicos assumem um tom mais pessimista conforme avançamos rumo à segunda metade dos anos 70, em um movimento que coincide com seu progressivo afastamento do projeto wagneriano: a perda das ilusões reformistas do jovem Nietzsche atinge tanto a sua esperança quanto ao presente quanto as suas convicções acerca do passado grego e parecem dar lugar a uma crescente suspeita de que o fracasso da filosofia no passado lança uma luz dolorosa sobre as esperanças do presente, desmascarando-as como meras ilusões. Este sentimento se confirma em 1876, na grande decepção com o evento de Bayreuth. Mas o afastamento de Nietzsche de suas ambições reformistas de juventude não se deve apenas a este conjunto de reflexões acerca da viabilidade e do papel político da filosofia e da arte. Ele ocorre também, eu até diria principalmente em função de uma nova e crescente demanda pessoal por liberdade e por recolhimento. Ou, como Nietzsche diria, por uma necessidade pessoal de resfriar a máquina superaquecida pelos anos de proximidade de Wagner e de Schopenhauer, com os quais o jovem filósofo compartilhou o gosto por uma atmosfera de exaltação e de entusiasmo constantes. Em outra ocasião eu chamei a atenção para o fato de Nietzsche citar Montaigne justamente nas duas considerações extemporâneas que tratam de seus dois grandes mestres, Schopenhauer e Wagner. Estas citações são o que há de mais revelador sobre o estado de espírito de Nietzsche ao compor estes dois escritos apologéticos, e para bom entendedor elas deveriam soar como uma grande traição aos seus objetos de veneração, pois nelas o que é dito sobre Montaigne contradiz inteiramente e ponto por ponto o que se diz de forma mais prolixa no restante do texto.
Isso não significa que o traço reformista e o ativismo tenham sido deletados da personalidade filosófica de Nietzsche. O que ocorre no período intermediário é um afastamento temporário destes componentes de sua personalidade e, a se acreditar no depoimento do próprio Nietzsche, adotado para fins terapêuticos pelo seu impulso de sobrevivência e por sua vontade de independência. Estes elementos serão paulatinamente reintegrados ao todo de sua personalidade, até que eles finalmente se imponham no ainda mais ambicioso projeto de maturidade, que aparece sob a problemática rubrica de uma transvaloração de todos os valores. Nas ambições reformistas ou revolucionárias do último Nietzsche o artista não fará sombra ao filósofo, que comparece como o único à altura da tarefa de legislar novos valores. Que esta expressão ambiciosa tenha sido reservada para os póstumos parece indicar que mesmo o último Nietzsche não acreditou sem alguma reserva no poder de intervenção da filosofia. Para minimizar um pouco a sua enorme desconfiança em relação às condições de êxito da intervenção filosófica, Nietzsche parece ter adotado duas estratégias distintas: (1) passou a conceber esta intervenção em termos mais abstratos e numa perspectiva de longa duração: não se trata mais de reformar a cultura alemã ou suas instituições artísticas e educacionais, e sim os valores. No final das contas e no cômputo geral os homens da vida contemplativa terminam sempre por triunfar, sendo os homens de ação meros atores no palco tragicômico da história, atores que seguem um texto redigido pelos verdadeiros protagonistas, os filósofos e, no passado, os fundadores de religião. Os artistas são incapazes de independência e estão a serviço de causas postas por outros; (2) do ponto de vista de uma intervenção mais imediata, Nietzsche parece ter concentrado seus últimos esforços numa tentativa de demolir o cristianismo mediante o sequestro de seu fundador legítimo, desvinculando-o de todos os grandes dogmas pelos quais se pautou o cristianismo historicamente existente, e mediante um ataque impiedoso à figura de seu fundador institucional, o apóstolo Paulo, contra o qual Nietzsche mobiliza argumentos que remetem em parte a valores compartilhados pelos cristãos.
Este é o esboço geral do que eu suponho que sejam os desdobramentos futuros do que está em germe nesta carta de Nietzsche de dezembro de 1870 a Erwin Rohde. Há muitos outros elementos interessantes nesta correspondência, mas que são subsidiários disso que eu suponho que seja o seu ponto principal. Um destes elementos é um topos comum das discussões nietzscheanas: em que medida a filosofia, tal como concebida por Nietzsche, é compatível com a forma institucional do ensino universitário. Esta discussão não se restringe a Nietzsche; ela é uma velha obsessão de filósofos. A filosofia quase sempre esteve em crise com as instituições, e é disso que estamos falando ao longo deste post: parte importante do ímpeto reformista do filósofo se dirige às instituições. Mas é igualmente necessário lembrar que a filosofia não poderia sobreviver fora de todo e qualquer quadro institucional: fundar um monastério para espíritos livres (o projeto que Nietzsche já parece ter em mente como um substituto para a instituição universitária e que ganha uma pequena concretização na estadia de Sorrento em 1877) não é prescindir das instituições, mas substituir uma instituição enrijecida por outra com regras (uma vida sem regras e sem hábitos, sem alguma rotina, seria humanamente insuportável) mais adequadas às necessidades corporais e espirituais de seus membros, que permita um segundo tipo de reforma, este mais importante do que o primeiro, porque é o verdadeiro fim do primeiro: a reforma de si.

E antes da tradução propriamente dita, segue um link para aqueles que leem e entendem alemão. Um ótimo programa da Deutschlandfunk (uma estação de rádio alemã com programação de altíssimo nível) sobre o programa reformista de Nietzsche, com uma fina reflexão sobre a melancólica percepção de que ele estava condenado ao fracasso. O autor é o teórico da literatura e historiador da filosofia Peter Bürger. Segundo suas conclusões, Nietzsche pertence a uma linhagem de pensadores que teve em Adorno seu último representante.

Tenham todos um bom domingo.
Com vocês o jovem Nietzsche, mais uma vez.

Carta enviada por Nietzsche de Basel ao amigo Erwin Rohde em Hamburgo, datada de 15 de dezembro de 1870.

Meu querido amigo,

Sequer um minuto se passou desde a leitura de tua carta e já te escrevo. Queria dizer-te apenas isto: que sinto exatamente o mesmo que ti e que considero uma ignomínia se não nos desembaraçarmos algum dia deste torpor nostálgico por meio de uma ação enérgica. Agora ouça o que venho remoendo em meu espírito. Nós nos arrastaremos ainda durante alguns anos por esta existência universitária, e a tomaremos por um sofrimento instrutivo, que se tem que suportar com seriedade e com espanto. Entre outras coisas, este deve ser um tempo em que se aprende como ensinar, e aperfeiçoar-me nisso vale para mim como minha tarefa. Acontece apenas que eu me propus um objetivo algo mais elevado.

Pois com o tempo começo também a perceber qual é o ponto da doutrina schopenhaueriana acerca da sabedoria universitária. Aqui não é possível um ser inteira e radicalmente voltado para a verdade. Sobretudo, algo verdadeiramente revolucionário não poderá tomar a universidade como seu ponto de partida.

Nós só podemos, portanto, nos tornar verdadeiros mestres na medida em que formos capazes de alçar a nós mesmos, com todos os meios possíveis, para fora da atmosfera do tempo presente, e na medida em que formos não apenas mais sábios, mas sobretudo melhores. Também aqui eu sinto, sobretudo, a necessidade de ser verdadeiro. E também por isso eu não poderei suportar por muito mais tempo o ambiente das academias.

Por conseguinte, devemos nos livrar algum dia deste jugo; isto para mim é absolutamente certo. E então formaremos uma nova academia grega. Romundt com certeza estará conosco. Por ocasião de tua visita a Tribschen certamente tomastes conhecimento do plano de Wagner para Bayreuth. Eu tenho refletido comigo mesmo se não deveria ocorrer simultaneamente de nossa parte uma ruptura com a filologia, tal como ela tem sido praticada até o momento, e com sua perspectiva formadora. Estou preparando uma grande adhortatio [exortação] a todos aqueles que ainda não foram inteiramente sufocados ou engolidos pelo tempo presente. Mas quão lamentável é o fato de que eu tenha que expor-te estas coisas por escrito, e que cada um destes pensamentos já não tenha sido discutido contigo há muito tempo! E como não conheces o presente dispositivo na sua totalidade, meu plano provavelmente te parecerá um capricho excêntrico. Isto ele não é, ele é uma necessidade.

Um livro de Wagner sobre Beethoven que acaba de ser publicado poderá te dar uma pista de muito daquilo que eu agora espero do futuro. Leia-o, ele é uma revelação do espírito em que nós – nós! – viveremos futuramente.

E mesmo que tenhamos poucos companheiros que compartilhem de nossas ideias, eu ainda assim acredito que conseguiremos nos subtrair a esta corrente – com alguma perda, é claro – e alcançaremos uma pequena ilha onde não precisaremos mais tapar os ouvidos com cera. Seremos então mestres uns dos outros, e nossos livros não serão mais que anzóis destinados a conquistar este ou aquele para a nossa comunidade artístico-monástica. Viveremos e trabalharemos uns para os outros e nos deliciaremos uns com os outros – esta talvez seja a única forma sob a qual devemos trabalhar para o todo.

Para te provar a seriedade do meu intento já comecei a limitar as minhas necessidades, de modo a reservar uma pequena parte de meus bens. Também deveremos tentar a nossa “sorte” em loterias; e se escrevermos livros, eu exigirei para o período vindouro os mais altos honorários. Enfim, todos os meios não ilícitos serão empregados para que objetivamente estejamos em condições de fundar o nosso monastério. – Temos, portanto, a nossa tarefa para os próximos anos.

Que este plano possa, sobretudo, parecer-te digno de ser cogitado! A carta deveras comovente que acabo de receber de ti me dá a comprovação de que este era o momento de te expor o plano.

Não estaremos nós em condições de trazer ao mundo uma nova forma de academia,

“e acaso não posso, pela força do mais ardente desejar,

trazer de volta à vida das formas a mais singular?

como diz Fausto a propósito de Helena?

Ninguém sabe coisa alguma deste intento, e depende de ti se nós agora faremos ou não a Romundt um comunicado preparatório sobre o mesmo.

Nossa escola para filósofos não é, certamente, alguma reminiscência histórica ou um capricho excêntrico – pois não é uma necessidade que nos move nesta direção? Parece que o plano que fizemos quando estudantes, de viajarmos juntos, retorna sob uma nova forma, simbolicamente mais abrangente. Eu não pretendo ser aquele que mais uma vez te deixa na mão, como ocorreu outrora; disso eu ainda guardo remorsos.

Com as melhores esperanças

Teu fiel frater Fridericus.

De 23 de dezembro até 01 de janeiro estarei em Tribschen, Lucerna. – Ignoro inteiramente os planos de Romundt.





1 comentários:

  1. Que preciosidade acabo de descobrir aqui!
    Sou aluno da graduação do curso de História da UFES e tenho dedicado os últimos anos à investigação sobre o envolvimento de Nietzsche no conflito Franco-prussiano. Encontrar boas traduções para o português das cartas do filósofo sempre dão animo novo à pesquisa.
    Parabéns pela iniciativa, Rogério. E muito obrigado. Tenho certeza que este blog contribuirá muito para minhas investigações.

    saudações,
    Rüsley Biasutti

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