segunda-feira, 23 de maio de 2011

Convite para o lançamento de Nietzsche e as Ciências

Pequenas resenhas: Nietzsche e as Ciências.

Nietzsche e as Ciências é primeira publicação em língua portuguesa dedicada ao tema

O volume Nietzsche e as Ciências, publicado este ano pela Editora 7Letras em parceria com a UNIRIO, foi organizado pelos professores Miguel Angel de Barrenechea, Charles Feitosa, Paulo Pinheiro e Rosana Suarez. Trata-se de uma coletânea de 27 artigos na qual se pode constatar a ampla diversidade de abordagens que domina a literatura secundária sobre o filósofo alemão. Estes artigos resultaram das palestras proferidas na sexta edição do Simpósio Internacional de Filosofia Assim falou Nietzsche, realizado em novembro de 2009 na UNIRIO.

A escolha do tema pela comissão organizadora do Simpósio, assim como a presente publicação, é mais uma iniciativa no sentido de desfazer de uma vez por todas um mito amplamente difundido segundo o qual Nietzsche foi um filósofo avesso às ciências e um adversário da racionalidade científica. Este mito se formou ao longo da recepção nietzscheana no século XX, sendo extremamente difícil isolar todas as causas responsáveis pela sua formação e difusão, assim como é igualmente difícil identificar as diversas etapas deste processo. Uma coisa, contudo, é certa: este mito não resistiu às investidas da pesquisa erudita das últimas décadas. Na verdade, este mito foi patrocinado muito mais pelos grandes filósofos que se apropriaram de Nietzsche (Foucault é, neste sentido, uma das raras exceções) do que pelos intérpretes que buscavam uma compreensão mais objetiva de sua obra. Se pensarmos nas apropriações tão díspares e igualmente criativas que filósofos como Heidegger, Adorno e Deleuze fizeram da obra de Nietzsche, poderemos constatar que a tese da aversão às ciências é um dos poucos traços comuns destas apropriações. Logo, não é inteiramente verdadeiro que a associação de Nietzsche a uma posição anticientífica seja um produto exclusivo de uma primeira recepção do filósofo entre intelectuais e artistas sem formação filosófica. É possível que os grandes filósofos do século XX tenham contribuído mais para a difusão deste mito do que a boemia artístico-literária do início do século

Por outro lado, os trabalhos eruditos tentaram apontar, já no início do século, para a unilateralidade da imagem dionisíaca de Nietzsche. Estes estudos pioneiros, que estavam atentos ao contexto científico do pensamento de Nietzsche e cientes da importância de sua interlocução com as teorias da época (podemos citar os estudos de Raoul Richter, Hans Vaihinger, Charles Andler, Alwin Mittasch e Oskar Becker, dentre outros), foram retomados pela escola de Montinari e conheceram um novo fôlego e detalhamento nas décadas de 70 a 90, com trabalhos de grande rigor historiográfico e fôlego especulativo (como os de Wolfgang Müller-Lauter, Günter Abel, Marco Brusotti, Paolo D´Iorio, Aldo Venturelli, Andrea Orsucci, entre tantos outros). Entre os estudiosos de língua inglesa merecem menção os diversos estudos de Robin Small, Georg Stack, Thomas Brobjer e Gregory Moore.

Em termos de abrangência e diversidade de abordagem, nenhuma publicação ainda superou os dois volumes organizados por Babette Babich em 1999 e publicados pela Kluwer: Nietzsche, Theories of Knowledge and Critical Theory: Nietzsche and the Sciences I [Boston Studies in the Philosophy of Scienc.]. Dordrecht: Kluwer, 1999; Nietzsche, Epistemology and Philosophy of Science: Nietzsche and the Sciences II. [Boston Studies in the Philosophy of Science]. Dordrecht: Kluwer, 1999. Um volume mais recente, que deve ser consultado com algum interesse, é o resultado da XI edição da Conferência anual da Friedrich Nietzsche Society-UK. O volume foi organizado por Thomas Brobjer e Gregory Moore: Nietzsche and Science. Hampshire: Ashgate Publishing Limited, 2004. Como prova do interesse crescente pelo tema podemos citar a conferência internacional ocorrida em julho de 2010 na TU-Berlin (Nietzsches Wissenschaftsphilosophie) e o congresso ocorrido em abril de 2011 na Universidade Autônoma do Estado do México (La Filosofía de Nietzsche y su trasfondo científico).

O presente volume é o primeiro em língua portuguesa a se dedicar ao tema “Nietzsche e as ciências”. Não se pode afirmar, contudo, que ele seja dedicado exclusivamente ao tema, já que nem todas as contribuições tratam especificamente das ciências. Apesar disso, o volume cobre diversos aspectos relacionados ao tema, em especial à relação de Nietzsche com as ciências particulares. Este é, aliás, o ponto forte do volume, pois diversas ciências particulares são nele contempladas.

A primeira parte do volume inclui as poucas contribuições que tratam da relação de Nietzsche com as ciências em geral (como é o caso do meu próprio texto, que abre a coletânea, e dos textos dos professores Miguel Angel, Kathia Hanza e Fernanda M. de Bulhões), ou então com as ciências naturais em particular (seja a biologia, como é o caso do texto de André Itaparica que retoma a discussão com o darwinismo, seja a biologia e a física, como é o caso do texto da profa. Scarlett Marton, seja a geografia, como é o caso do texto de Charles Feitosa); a segunda parte do volume reúne artigos que tratam das diversas ciências da cultura e da sociedade (os editores advertem na apresentação que esta divisão obedece a uma intenção puramente didática): temos então contribuições que discutem a relação de Nietzsche com a história (os artigos das professoras Adriana Delbó e Cláudia Beltrão & Patrícia Horvat), com a psicanálise (Jô Gondar & Francisco R. de Farias), com as ciências sociais (Javier Alejandro Lifschitz) e com a filologia (ensaio de Rosana Suarez) e demais ciências da linguagem (Paulo Pinheiro e Rafael Haddock-lobo). Finalmente, textos que tratam da política (as contribuições de Vanessa Lemm e Valéria Wilke). Na maior parte destes casos (com exceção dos textos de Adriana Delbó e Rosana Suarez, que se mantêm no espírito das contribuições da Parte I) o ponto de referência é invertido; ou seja, já não se trata mais de investigar as fontes científicas do pensamento nietzscheano, mas de determinar em que medida sua filosofia serviu de estímulo e inspiração para as disciplinas científicas ao longo do século XX.

Esta é uma primeira e louvável iniciativa no intuito de introduzir o leitor brasileiro em um dos campos mais férteis da atual pesquisa Nietzsche. Embora a pesquisa Nietzsche tenha avançado muito no sentido de enfatizar o diálogo do filósofo com as diversas ciências de sua época, identificando seus principais interlocutores, os pontos de convergência e de divergência, assim como os empréstimos de teses e de vocabulário, ainda há muito a ser feito para que possamos nos esclarecer acerca do modo como Nietzsche concebia a relação entre reflexão filosófica e investigação empírica. Estas são questões propriamente conceituais e de definição de estratégias filosóficas. Se é verdade que Nietzsche afirmou em sua tentativa de autocrítica ao NT que a grande novidade de sua filosofia consistiu em “ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...”, foi também ele que reconheceu (na nota que encerra a primeira Dissertação de Para a Genealogia da Moral) que a tarefa propriamente filosófica, a tarefa legislativa reservada aos filósofos do futuro, não poderia ser conduzida a bom termo sem o auxílio das diversas ciências particulares: “Todas as ciências devem doravante preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim compreendida: o filósofo deve resolver o problema do valor, deve determinar a hierarquia dos valores”. A tarefa que Nietzsche propõe para o filósofo não é das mais modestas. Esta é uma polêmica à parte. Mas à parte isso, devemos tentar nos esclarecer qual função caberia às ciências empíricas no contexto desta concepção pouco realista da tarefa filosófica. Esta é uma tarefa do intérprete, modesta ma non troppo.

domingo, 22 de maio de 2011

Da série: uma carta aos domingos

Publico hoje apenas a primeira parte da carta de Nietzsche a Erwin Rohde, na qual N discute detalhes do texto que Rohde estava preparando como uma réplica ao ataque desferido por Wilamowitz-Möllendorf ao Nascimento da Tragédia em seu panfleto intitulado Zukunftsphilologie. Na carta Nietzsche se concentra em detalhes filológicos e procura fornecer a Rohde elementos para rebater algumas acusações infundadas de W-M referentes às suas concepções acerca da pré-história do gênero trágico.
A literatura secundária recente tem procurado desfazer o mito segundo o qual com O Nascimento da Tragédia Nietzsche teria violado os padrões de cientificidade estabelecidos pela filologia crítica de sua época. Estudos como os de Marcelo Gigante, Christian Benne e James Porter mostram que a polêmica entre Wilamowitz-Möllendorf e Nietzsche não pode ser vista como uma polêmica entre a filologia científica e a apropriação ético-estética da antiguidade. Esta carta corrobora a posição recente da literatura secundária, pois nela Nietzsche insiste que a visão da antiguidade exposta no NT é uma visão que se sustenta e que pode ser defendida de um ponto de vista exclusivamente filológico. Ao longo da semana eu espero poder atualizar este post, acrescentar algo a este comentário introdutório e terminar a tradução da carta. Sugestões são sempre bem-vindas. Um bom final de domingo a todos.


Carta de Nietzsche a Erwin Rohde, Basiléia, 16 de julho de 1872.

Aqui tens o título, meu querido e bom amigo; uma invenção de meu companheiro de residência, o prof. Overbeck, acolhida com júbilo e clamor zombeteiro:

A pseudofilologia
do Dr. U. v. Wilamowitz-Möllendorf.
Carta aberta de um filólogo
a Richard Wagner

Seu nome virá então somente no final da carta, ou seja, na conclusão (mas inteiro e com todas as distinções!) Na conclusão você poderá a seu bel prazer se referir ocasionalmente a Wilamowitz como "pseudofilólogo". Ele vale para nós como representante de uma "falsa" filologia e o sucesso de seu escrito ocorrerá também na medida em que ele apareça como tal para os outros filólogos. Quero escrever uma vez mais a Ritschl, em tom grave e penetrante, para que ele abandone a incompreensível ideia de que nós tínhamos em vista um ataque à ciência da antiguidade (ou à história!). Eu havia dito a ele apenas que você pretendia liquidar com este rapazote topetudo em termos estritamente filológicos. Mas a carta de Wagner o horrorizou de tal forma, que ele agora tomou pavor de todos nós. Por isso a preocupação com a "filologia teubneriana"! Eu te recomendo usar a expressão apenas entre quatro paredes.

No que diz respeito à afirmação de Wilamowitz sobre Aristarco e os titãs, não consigo encontrar nada a que ele pudesse querer se referir. Welcker Mythologie I 262 foi quem se pronunciou de forma mais explícita sobre o caráter pré-homérico das lutas dos titãs. Que não me venham mais uma vez com a velha e frouxa asserção do mundo homérico como a juventude, a primavera dos povos e assim por diante! Tal como tem sido formulada, esta é uma asserção falsa. Que este mundo tenha sido precedido por lutas prodigiosas e selvagens, nas quais dominavam a barbárie e crueldade mais tenebrosas, que Homero se ergue como vencedor ao final deste período longo e desolado é uma das minhas mais firmes convicções. Os gregos são mais velhos do que se pensa. Pode-se falar da primavera, desde que antes dela coloquemos o inverno; mas este mundo de pureza e beleza certamente não caiu do céu. Considero minha concepção do sátiro como algo muito importante neste domínio de investigações; e isto é algo de substancialmente novo, não é mesmo? - Causou grande escândalo o fato de que eu tenha dito que o sátiro, em sua representação mais antiga, tem pernas de bode; é totalmente estúpido recorrer exclusivamente à arqueologia para se opor a esta tese. A arqueologia conhece apenas o tipo enobrecido do drama satírico; antes disso encontra-se a representação dos bodes como os servidores de Dioniso e dos saltos de bodes de seus adoradores. As pernas de bodes são o propriamente característico das representações mais antigas; e sem qualquer prova arqueológica eu gostaria de sustentar que os Ούτιδανοί άμηχανόεργοι de Hesíodo tinham pés de bode, isto é, eram capripedes como diz Horácio od. 2,2. e outros poetas (mesmo poetas gregos). σάτυροι explico, assim como τίτuρoι como reduplicação da raíz Τερ (assim como Σίσυφος se relaciona com σοφός). Τορός penetrante, agudo; σάτυροι como „aqueles de grito penetrante”, como epíteto dos bodes, do mesmo modo que μηχάδες o é para as cabras. Eu creio que é uma esplêndida equação: τορός está para τίτυρος = σοφός está para σίσυφος. Se te agrada, você pode citá-la. É óbvio que eu não confundo o sátiro com Pã, como Wil. me acusa [...].